sábado, 27 de julho de 2024

Kit Kat: um doce de gatinha






Tão pequena e branquinha, toda enrolada numa touca preta que estava longe de ser o suporte ideal para o transporte de uma gatinha com apenas alguns meses de vida, podia ser facilmente confundida com um floco de neve em uma tarde fria como aquela, quando encontrou finalmente o calor de que precisava no coração daquela que seria sua nova família, desta vez, para a vida inteira.

Não tinha mais do que 5 ou 7 centímetros, mas os olhos, verdes e profundos, já se mostravam cheios de uma curiosidade perpétua, capazes de enxergar até mesmo o que os humanos se recusam a reconhecer que existe. Com o tempo, sabia ler as emoções das pessoas com quem passou a conviver e amar, melhor do que elas mesmas podiam.

Um fato conhecido por aqueles que amam gatos é que os felinos, por sua vez, amam caixas. Por isso, seu primeiro presente, antes mesmo de ganhar um nome, foi uma caixa toda almofadada, decorada com um laço lilás grande e fofo, que envolvia todas as bordas como um abraço. Claro que o reconhecimento desse esconderijo contou com algumas mordidas e arranhões, mas bastou alguns instantes para que a nova ocupante se sentisse a senhora daqueles domínios. Só depois é que fomos entender que isso valia na verdade para a casa toda.





Tinha uma atração especial pelos longos cachos da mulher mais velha, a quem reconheceu como mãe. Era comum ver a pequena se posicionar no encosto de cabeça do sofá para poder melhor explorar que segredos havia por debaixo dos caracóis daqueles cabelos, curiosidade que sempre rendeu muitas risadas e até hoje é uma de nossas lembranças mais preciosas.

Foi o menino mais novo quem escolheu o nome. Se conectaram intensamente desde o momento em que se conheceram, e já na primeira vez em que a gatinha procurou a sua companhia para dormir em segurança, não pode conter as lágrimas e nem mesmo imaginar um futuro sem ela. Tocavam os narizes como sinal de reconhecimento familiar, e por causa da doçura deste gesto, achou que ela devia ter nome de chocolate, achou que ela deveria se chamar: Kit Kat.




Em poucos anos, Kit Kat cresceu em tamanho, fofura e habilidades felinas. Embora mantivesse os instintos sempre aguçados, estava totalmente integrada aos hábitos da casa. Não seria exagero dizer até que se parecia bastante com seus humanos de estimação. Embora acordasse sempre mais cedo do que seus tutores, depois de comer e beber água, voltava a deitar-se por sobre as pernas da mãe e aguardava que essa se levantasse para só então iniciar seus afazeres de gata.

No dejejum, aprendeu a gostar de pedacinhos de melão, que a mãe carinhosamente preparava amassadinhos todas as manhãs e que eram ansiosamente aguardados pela pequena, antes mesmo de partir para o prato principal da ração preferida. Chegava mesmo a se sentar à mesa como os demais ocupantes da casa para aguardar o preparo da fruta costumeira.

Era a companheirinha de todas as horas. Quando o menino mais novo passava muito tempo fazendo seus trabalhos da escola, Kit deitava sobre os materiais para exigir que ele fizesse uma pausa e assim ganhar um colo e quem sabe bastante carinho atrás das orelhas. Mas nunca na barriga, pois a barriga era território proibido.




Algumas pessoas dizem que gatos não se apegam aos seus donos, que não expressam carinho da mesma forma que fazem os cachorros, por exemplo. Mas quando se convive tão de perto e amorosamente com um felino, é possível aprender a ler os sinais de sua afeição.

Quando aprendeu a confiar na família que a abrigava e nutria de amor constante, Kit Kat tornou-se quase inseparável da mãe, retribuindo cada carinho do menino mais novo com um ronronar suave e prolongado, que parecia emergir direto do coração. Se ouvia e reconhecia seu nome – sim, ao contrário do que diz o senso comum, os gatos reconhecem o próprio nome – dava à cauda um lindo formato ondulado que só podia significar profunda felicidade por ser o foco de nossa atenção.

Sentia-se segura com o contato visual e dava lentas piscadinhas para expressar tranquilidade ao estar em nossa companhia. De fato, ela passou a estar sempre presente, a fazer parte de cada decisão tomada, de cada momento de júbilo ou tristeza que enfrentamos, de cada recordação que construímos juntos, em família.

E quando a família decidiu deixar a cidade grande para viver mais perto de sua rede de apoio e fortalecer os laços com seus entes queridos indo residir em uma localidade do interior, é evidente que a Kit Kat tinha o seu lugar na casa e na vida nova.



Ali o espaço era mais amplo. O horizonte mostrava um verde cheio de novas possibilidades e as portas e janelas podiam permanecer abertas. Junto com os lírios brancos, que florescem em outubro, veio à luz, no espirito da gata, um desejo incontrolável de explorar, de entregar o seu nariz a novos cheiros, os olhos a novos e instigantes movimentos e ao paladar, claro, novos sabores.

Com certeza há outros tutores que vão dizer – não sem alguma razão - que, tendo ela sido criada como gata doméstica, não estaria preparada para todas essas novas vivências que se apresentavam, e que o melhor teria sido mantê-la em casa, mesmo que para isso fosse necessário seguir restringindo sua liberdade.

Em resposta a essas pessoas, as convido a uma reflexão: é correto apresentar o mar a um marinheiro nato para, em seguida, proibi-lo de navegar? É correto dar a conhecer a música à bailarina e tirar dela a possibilidade de dançar? Em face de escolha semelhante, não pareceu possível (nem justo) fechar as portas para a realização plena das punções naturais da felina, que finalmente podia conhecer mais do mundo e de si mesma.

Claro que nem tudo foram flores, ou insetos, ou passarinhos instigantes e divertidos. Junto com a liberdade vieram as investidas e as disputas territoriais com os mandachuvas do novo local. Houve até mesmo um episódio em que, ao voltar para casa depois de um dia de caçada, a família percebeu em seu pescoço uma coleira diferente da que comumente usava, que foi logo descartada. Ainda que o ocorrido acendesse um sinal de alerta, nunca houve medo de fuga, pois o único laço real que prende todo e qualquer ser vivo é o amor e, por isso, não importa o quão longe suas aventuras a levassem, ela sempre soube para onde voltar.

O tempo avançou como se perseguisse uma presa e quem olhasse a grama alta com desatenção, já não era capaz de dissociar a felina do habitat que dominava. Vez ou outra se deixava perceber quando saltava para surpreender seus alvos ou para retornar à segurança de casa, sempre com um miado que parecia perguntar quem estaria presente para recebê-la e compartilhar as alegrias de suas aventuras. Não ouve outro tempo em que parecesse tão genuinamente feliz.



Era de praxe que, ao retornar, ainda húmida pelo orvalho da serra, procurasse se esfregar em quem estivesse disponível no interior da casa, para que este notasse a necessidade de secar os pelinhos da guerreira, que aguardava calmamente o processo como se fosse uma recompensa merecida. Na verdade, era mais um momento de cuidado, de carinho, de conexão que, ao invés de onerar o dia, era visto com satisfação também para quem se prontificava a doar alguns instantes para o mimo.

E foi cercada de todo amor do mundo que continuou crescendo. Exercitando a curiosidade a cada abrir e fechar de porta ou gaveta, explorando cada segredo escondido nas frestas do dia a dia. No entanto, ela mesma guardava um segredo que, por mais conhecêssemos os seus gestos, sua personalidade, ela nunca seria capaz de nos contar. E tanto o menino mais novo quanto a mulher mais velha jamais seriam capazes de supor.

Quem olha pela janela em um fim de tarde de primavera, admira a beleza do céu multicolor também porque sabe que aquele momento passa. E mesmo que o seu colorido intenso e vivo pareça, por um instante, preencher e dar significado a tudo o que existe, também ele se despede lentamente ao cair da noite, deixando a certeza de que, ainda que presenciemos ainda dezenas de outros pores do Sol, nenhum outro será como aquele. Aprendemos da forma mais difícil que isso vale também para quando somos obrigados a nos despedir do nosso “floquinho de neve” que tanto e por tanto tempo amamos.






Os dias que antecederam sua partida foram quase tão frios quanto aqueles há 7 anos, quando uma filhotinha de pelos arrepiados e miado tímido chegou em nossa família trazendo debaixo dos bigodes um tipo de felicidade que nem eu (o menino mais novo) nem minha mãe (a mulher mais velha) sabíamos que existia. Infelizmente, dessa vez, nada traziam consigo, e tudo levaram em troca.

Sendo Kit Kat tão ativa e vibrante como era, o menor sinal de abatimento se tornava muito evidente. A família começou a notar que, por dias, já não brincava como antes, já não caçava como antes e até se recusava a se alimentar. Cresceu então uma preocupação em nosso coração e não tivemos escolha senão buscar a ajuda de um especialista.

Os exames mostraram então que, além de tudo o que já sabíamos, havia algo que tornava Kit Kat ainda mais especial: aquela anjinho de quatro patas veio ao mundo com apenas um rim. Sinceramente não tenho conhecimento do quão comum é essa condição entre gatos mas imagino que o impacto no tempo e qualidade de vida daqueles que tem de conviver com ela seja significativo.

Claro que imediatamente seguimos as recomendações médicas e mudamos para uma ração específica para felinos pacientes renais (que tivemos que trocar duas vezes até encontrar marca e sabor que fossem do agrado da pequena). Ainda assim, foi necessário complementar sua alimentação com doses de soro diárias para hidratação e remédios.





Mesmo com todos os cuidados, Kit Kat já não conseguia recobrar o vigor. A cada vez que retornava para casa, parecia estar um passo mais perto do fim de sua jornada, guardando suas forças para estar próxima da família o máximo que podia. Partiu de forma breve, no colo da mãe que a adotou e que tanto amava. O colo preferido, que tantas vezes lhe serviu de refúgio, foi também o que lhe rendeu o último abraço.

Não há um único dia, desde então, que a lembrança da gatinha mais amorosa do mundo não se faça presente. Cada cantinho da casa parece guardar o cheiro e uma recordação dela. O melão na mesa do café, pelinhos esparsos esvoaçando pelos lugares mais inusitados, um brinquedo espalhado que parece estar esperando a hora dela voltar, tudo serve para dar à vida em um certo estado de suspensão involuntária, onde a única coisa real é a ausência.

Há os de coração prático que dizem que esse vazio só se afasta com a adoção de um novo pet. Mas o meu coração de poeta, dominado ainda pelo luto, se recusa a pensar na Kit Kat como algo que possa ser substituído, pois não há substituto para o afeto.

O nosso pinguinho de leite não era apenas um gato. Desde a sua chegada, sempre teve o seu lugar como membro da família. A simples presença dela alterou muito mais do que os hábitos da casa, transformou também as dinâmicas das relações, que se tornaram ainda mais amistosas, carinhosas, empáticas. Tudo porque agora os tutores partilhavam entre si o propósito comum de construir também para a Kit Kat o melhor lar que pudesse existir. Com ela, havia histórias que só os três partilhavam, havia risadas que só os três compreendiam. E havia uma compreensão mútua de que todos tinham o seu papel naquela nova estrutura. Onde à parte felina competia ser, muitas vezes, filtro e fluxo do amor que conectava as outras duas partes.




Essa percepção não pode ser aprendida ou transmitida com palavras para aqueles que não possuem a mesma vivência. Talvez por isso nunca sejam capazes de compreender que cada amigo bicho é único, assim como cada ser humano – que também é bicho – deveria se esforçar pra ser.

E por falar em esforço, ainda estamos nos esforçando para organizar a vida e os sentimentos sem a presença física da Kit. Realmente espero que este relato possa funcionar como uma mão estendida a todos os leitores que, por ventura, já tenham atravessado experiências semelhantes, para que possam segurar bem firme e saber (e sentir) que não estão sozinhos. O luto é seu. Mas o fardo pode e deve ser compartilhado por todos aqueles que aprenderam a ter um coração mais compassivo, parecido com o do amigo bicho com o qual tiveram o privilégio de conviver.












segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

O fim de ano e o fenômeno migratório da classe média

Pela segunda vez consecutiva, em 37 anos, evitamos o frenezi migratório da classe média que obriga todos os seus representantes a enfrentar sorrindo perrengues injustificáveis em áreas litorâneas, unicamente para se sentir inserido nos imperativos de diversão socialmente estabelecidos e exaustivamente massificados pela indústria do entretenimento para o período de fim de ano.

Trocamos as longas horas de estrada e estresse no trânsito por mais tempo efetivo e de qualidade com a família. Deixamos de nos preocupar com o preço do pedágio e da gasolina para desfrutar sem reservas do valor da convivência sem atropelos, dos raros instantes de livre preenchimento da ociosidade concedidos pelo capitalismo contemporâneo. Nos encontramos com a possibilidade de vida além do fluxo.

Ao mesmo tempo, continuamos a ser bombardeados pelo status quo. Suavizadas por narrativas de "renovação", "lei da atração" e "boas energias",  práticas supersticiosas puramente alegóricas invadem o horário nobre dos meios de comunicação para alcançar e se cristalizar no inconsciente coletivo, ensinando os indivíduos a terceirizar a responsabilidade sobre os resultados de suas vidas ao relacionar ganhos financeiros, relacionamentos afetivos, saúde - e tudo o mais que for possível - aos astros, às cores da vestimenta, ao cumprimento de uma gincana de tarefas tão inócuas quanto estapafúrdias para atingir seus objetivos.

Assistimos, do conforto de nossa casa, se repetirem as mesmas reclamações e problemas de infraestrutura de cidades turísticas inchadas. Falta o básico: água, comida, segurança, sossego. São centenas de individualismos conflitantes, competindo pelo mesmo espaço nas faixas de areia e frequências sonoras das praias, rapidamente tornadas impróprias para banho e sanidade mental pelos próprios frequentadores.

Escapamos ainda das mesmas filas quilométricas do trajeto de volta (e das tristes estatísticas de acidentes de trânsito que povoam os noticiários pós-feriado). Inicio este novo ciclo - que não tem nada de místico e marca tão somente o tempo que este pálido ponto azul de forma geoide que habitamos leva para orbitar o Sol - da forma que mais me agrada: escrevendo. E lamentando que ainda haja tantos de nós que nem percebam o quanto estão presos a convenções e comportamentos irrefletidos. E pra não dizer que não falei das flores: um feliz (e livre) ano novo!    


sábado, 23 de dezembro de 2023

Nada vai bater tão forte quanto a vida

Tá certo, eu admito que roubei esse título do discurso motivacional que o Rocky Balboa faz ao filho no último filme da franquia (por favor desconsidere os caça-níqueis da trilogia "Creed"). O fato é que, diferente do que pode parecer, não me considero propriamente um fã do trabalho do Sly, mas a metáfora do boxe como um campo de cultivo da persistência e aprimoramento pessoal constante, sempre presente nas sequências que acompanham os altos e baixos da carreira do italian stallion - com o perdão do trocadilho - me acerta em cheio.

Isso porque você não precisa ser um pugilista profissional para enfrentar suas batalhas, ser nocauteado e decidir se vai ficar no chão ou continuar lutando antes da contagem final. Todo e qualquer ser humano e, por definição, consciente, alguma vez na vida já se sentiu diante de situação desafiadora e, de alguma forma, semelhante.

Eu mesmo nunca subi num ringue. Mas batalhei a vida inteira com um corpo que não responde aos estímulos na mesma velocidade do meu intelecto. Tive de entender e aceitar o meu próprio tempo e mobilidade para criar soluções adaptadas às minhas particularidades e, dessa forma, chegar ao topo de cada escadaria que um dia me propus a vencer. 

Os meus Dragos e Mr. Ts são muito mais do que punhos erguidos esperando uma brecha na defesa para me acertar. São a construção cotidiana da percepção interna de que, apesar de todas as limitações motoras, tenho comigo a capacidade de enfrentar um mundo que não foi pensado para pessoas como eu, que dificulta o acesso a todos os espaços públicos, opções culturais e ao ensino superior por falta das adaptações necessárias.

Contra esses adversários, minha resposta veio na forma de dois diplomas universitários e uma pós-graduação. Veio na conquista da CNH contrariando muitas expectativas. Ou ainda no exercício de ocupação compatível com minha formação e remunerada apropriadamente, de acordo com o trabalho realizado. 

Minha intensão aqui não é a da autocongratulação (até porque basta que sejam oferecidas as condições necessárias para que toda e qualquer pessoa com deficiência possa alcançar resultados semelhantes ou ainda melhores que os meus). É antes a de desfazer a noção comum que associa a deficiência física (ou qualquer outra) com fraqueza, com debilidade. A verdade é que a maioria dos indivíduos que olham para o PCD com preconceito ou pena, não aguentaria 10 min. se fosse colocada em nossa realidade. Essas pessoas certamente jogariam a toalha ainda no primeiro round. 

Você chamaria de fraco alguém que passou por uma cirurgia sem anestesia? Pois é, isso não é roteiro de filme, foi exatamente o que aconteceu comigo. Há muitos anos atrás, dei entrada em um hospital para a remoção de um abscesso. Com o tecido em torno do local inflamado, a anestesia aplicada não surtiu efeito, e mesmo com meus repetidos protestos e avisos de que estava sentindo todo o procedimento, o médico responsável seguiu com as incisões e raspagem. 

A despeito da fúria e indignação sentida, na época o que me ajudou a superar toda a dor da experiência foi justamente um trecho do discurso que dá título a esse texto. Lembro de trazer à mente que, assim como no boxe, na vida "não se trata de bater duro, se trata do quanto você consegue apanhar e seguir em frente. O quanto você é capaz de aguentar e continuar tentando."







domingo, 17 de dezembro de 2023

O dia em que "salvei o mundo" junto com Clarice Herzog (e não fiz nenhum registro para provar)

Pois é, até bem pouco tempo atrás, acreditei que poderia mudar o mundo... Quem roubou minha coragem? Lá pelos idos de 2010-13, ao lado de um bando de malucos ambientalmente conscientes, integrava as fileiras do Ecoberrantes, sob a tutela da insubstituível jornalista e ativista Teresa Urban (1946-eterna).

Muito antes do "dia do fogo", do "ir passando a boiada" e do "aquecimento global é coisa de ecochato e impede o desenvolvimento da economia" que - olha só, quem diria? - tem culminado na oscilação extrema do clima que o mundo todo vem enfrentando nos últimos anos, nós, assim como tantos grupos que ousavam pensar no futuro climático, ocupávamos espaços públicos com intervenções artísticas, coleta de assinaturas e manifestações que já alertavam para a importância da floresta em pé, e para os riscos e consequências da flexibilização das leis ambientais no Brasil.

As atividades do nosso grupo na capital paranaense chamaram a atenção do S.O.S. Mata Atlântica, e por conta do barulho que estávamos fazendo, fomos convidados pelo Mário Mantovani para ir até São Paulo colaborar na elaboração da campanha "Floresta Faz a Diferença". E assim fizemos: colocamos as esperanças na mala e fomos - minha querida amiga Bianca e eu - integrar a reunião.

Uma vez lá, sentamos à mesa com pessoas muito especiais, entre elas o inspirador Rafael Jó Girão (que hoje é um dos diretores do Instituto Agir Ambiental) e, claro, Clarice Herzog, a incansável ativista que transformou a perda do marido Vladmir Herzog para os horrores e arbitrariedades da ditadura no Brasil, em propósito e força na busca pela verdade.

Essa mulher é tão forte e relevante para a história deste país que teve a sua história contada no livro "Heroínas desta História", organizado por Carla Borges e Tatiana Merlino e publicado pela Autêntica Editora, além de ser referenciada em uma das obras mais importantes da música brasileira: "O Bêbado e a Equilibrista", de Aldir Blanc e João Bosco, se tornando um símbolo de resiliência entre os que perderam familiares naquele contexto histórico.

Pois bem, entre as lembranças que tenho daquela reunião, a mais marcante delas é a da própria Clarice me perguntando qual era o que identificávamos como o principal desafio de sensibilizar o público para as questões ambientais relacionadas à preservação da Floresta Amazônica. A minha resposta foi, na ocasião, que o principal desafio, para nós sulistas, era mostrar para as pessoas que, mesmo geograficamente distantes da floresta, nossas ações também têm impacto sobre ela, uma vez que as condições do meio-ambiente são afetadas por uma série de sistemas interconectados, um influenciando no equilíbrio do outro.

"Gostei da sua perspectiva, rapaz!", foi o que ela disse após o fim da minha fala. O desafio era mesmo fazer o público em geral compreender que todos nós temos o nosso quinhão de responsabilidade, seja pela forma como nos alimentamos, como consumimos os recursos naturais disponíveis e a forma como esses modelos de consumo definem os padrões adotados pela indústria. 

Preciso dizer que o incentivo e a vivacidade presente nas palavras de alguém a quem eu tanto admirava (e sigo admirando) me fizeram uma pessoa diferente hoje, mais confiante e muito mais determinado a defender da mesma forma tudo em que acredito. Tenho certeza que sou apenas mais uma das pessoas que foram transformadas pelo contato com ela mas se um dia esse texto chegar até ela, gostaria que soubesse que mudou a minha vida.

Não tenho ciência de quantas reuniões mais foram feitas e nem quantos setores das sociedade foram ouvidos até a elaboração final da campanha, mas lembro de ter sentido muito orgulho ao ver personalidades da época portando cartazes e desenvolvendo falas em apoio à campanha que, de certa forma, ajudamos a estruturar. A única coisa que lamento é não ter tido coragem de pedir à Clarice uma foto, embora esse encontro tenha ficado gravado para sempre em meu coração.

Esse aí sou eu colhendo assinaturas contra as alterações do Código Florestal, em 2011 (quanta ingenuidade)

     

    

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

A resposta que eu (não) dei... Em bom português

Indo buscar o que Cabral levou... 🇵🇹



Há algum tempo atrás lembro de ter lido sobre a declaração de alguma personalidade política ou midiática (talvez ambos), que lamentava o fato de o povo brasileiro não ter o mesmo envolvimento com a cultura lusitana que os portugueses teriam com os nossos produtos de entretenimento para exportação. Pois, afinal, nas palavras dele, somos nações irmãs.

Muito que bem. Lanço então uma pergunta ao leitor: você chamaria de irmão alguém que 1) veio até a sua casa sem ser convidado; 2) questionou a legitimidade de sua posse - mais que isso, arbitrariamente se declarou o novo dono dela, ignorando seus laços históricos e culturais com a terra; 3) saqueou seus pertences; 4) tomou à força mulheres e filhas; 5) escravizou seus filhos; 6) trouxe guerras e doenças que dizimaram seus parentes e 6) promoveu ativamente o apagamento de sua herança cultural, impedindo suas práticas religiosas, tradições e a transmissão do idioma nativo? Eu não.

Embora meu DNA compartilhe pouco com o dos povos nativos brasileiros, procuro ativamente conhecer a história do meu país e reconheço o lamentável papel que meus ancestrais europeus tiveram na pilhagem que os livros de história chamaram de "descobrimento".

Por ter ciência desse contexto histórico, quando saí do pais pela primeira vez para conhecer Portugal, postei uma foto nas redes sociais com a seguinte legenda: "Indo buscar o que Cabral Levou". Obviamente, em tom de brincadeira.

Durante o período em que lá estivemos, fizemos amizade sincera com o guia que nos acompanhava e, claro, o adicionamos às nossas redes para contatos futuros. Em dado momento, ele chega até a postagem e, a partir dela, desenvolve-se uma conversa.

Com ar professoral, o português se esforça para reforçar a perspectiva oficial, argumentando que, naquele recorte histórico, aquela porção de terra (que depois viria a se descobrir que tinha dimensões continentais) não havia sido reclamada por nenhuma nação "civilizada", com um rei constituído e que, portanto, Portugal tinha o direito de fincar nela o seu marco.

A resposta que não dei naquela oportunidade - em parte para evitar qualquer ofensa ao meu amistoso interlocutor, em parte para evitar que uma contenda precoce afetasse negativamente minha experiência no pais estrangeiro - passava pela constatação de que a percepção dos povos originários como incivilizados é um absurdo fundado apenas na ignorância.

Não é intelectualmente honesto aplicar a mesma régua para traçar noções gradativas para a organização social, as relações de poder ou mesmo a complexidade das manifestações culturais de um grupo, utilizando assim apenas um critério comparativo, sem considerar as particularidades de cada contexto onde as civilizações foram formadas.

O fato de a relação dos povos com a terra e organização do poder no "Novo Mundo" se dar de forma diferente da que ocorria na lógica imperialista europeia da época, não pode ser utilizado como sinônimo de incivilidade. Perpetuar essa visão serve apenas para cristalizar a noção de que existia "o jeito certo" de viver, em contraste com aquilo que era visto como barbárie por falta de aprofundamento nos costumes e cultura locais, ou mesmo por uma deslegitimação deliberada da cultura nativa por parte dos colonizadores.

Para tornar a empreitada da colonização viável e economicamente lucrativa no Brasil recém descoberto, uma série de violências foram perpetradas contra a população nativa. Essas violências têm reflexo até nos dias de hoje, e não há como negar que a história desses povos e a nossa enquanto país teria sido muito diferente se o encontro entre as duas culturas tivesse sido o de troca de experiências e coexistência pacífica ao invés do massacre que nos contam os registros históricos  




  

   


segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

O gringo que tentou comprar respeito - uma história lamentavelmente R($)eal

 Faltava ainda a perna mais longa do trajeto para finalmente desembarcar em Portugal. Esperávamos - cerca de vinte pessoas bem sortidas -, na sala de embarque, pelo serviço terceirizado de auxilio deslocamento fornecido gratuitamente pelo aeroporto.

Alguns conversavam entre si, outros mergulhavam no torpor dos celulares para fugir da inércia da espera, quando entra em cena um gringo de compleição monumental, sendo empurrado em uma cadeira de rodas por uma funcionária com um terço das medidas corporais do homem, mas o dobro da determinação.

Ela interrompe o périplo por um instante e tenta explicar ao gringo que, para o maior conforto dele próprio, deveria aguardar cinco minutos, no máximo, pela a chegada de uma nova cadeira de rodas mais apropriada ao seu tipo físico. Tudo isso com toda a educação do mundo.

A pedra de Sísifo então se exalta e começa a dirigir impropérios à moça que, minutos antes, tracionava a cadeira como quem vence uma colina com o mundo nas costas. Com incredulidade, os presentes observam o desenrolar da celeuma.

Tentando acalmar os ânimos, outro funcionário vem ao socorro da colega. O novo contendor, mais enfático mas nem por isso menos educado, reforça que a medida é apenas um procedimento padrão e que visa apenas o bem-estar do passageiro. 

Irredutível - e cada vez mais satisfeito com a atenção recebida -, o gringo dispara um sonoro "cale a boca, você está aqui para me servir, uma vez que paguei pelo embarque antecipado". À essa altura, a incredulidade dos espectadores involuntários se transformava em indignação. E já se ouviam vozes esparsas soltando um "gringo babaca" aqui, "deixa que se vire sozinho", acolá.

O atendente se impôs lembrando que aquele serviço, embora deva ser solicitado, não requer pagamento adicional do passageiro, que estava sendo conduzido da melhor forma possível - apesar da falta de educação que demonstrava - por cortesia, de forma gratuita. Ao que a pequena multidão aplaudiu.

Desencorajado pela manifestação dos terceiros, o individuo pareceu perceber o papel que desempenhava e amenizou o tom. Sendo propositadamente preterido em favor de outros passageiros, tentou se desculpar com os atendentes mas teve que amargar exatamente aquilo de que tentou fugir: a espera estendida.

Claro que em algum momento o passageiro foi embarcado com sucesso. Mas antes que fosse capaz projetar sua mesquinhez através do valor do seu dinheiro, teve ele de aprender que, sim, há virtudes que escapam da economia de trocas espúrias do capitalismo. 

     

  

domingo, 10 de dezembro de 2023

Por trás de todos os preconceitos está a mesma ignorância

Não sei se já falei disso abertamente aqui mas eu sou PCD (Pessoa Com Deficiência, nesses termos, sem aquele eufemismo idiota e impreciso de "portador de necessidades especiais"). E, tendo experienciado essa condição desde que nasci, tive contato, cedo demais para compreender, com o pior do ser humano: o julgamento prévio das minhas capacidades, olhares penosos disfarçados, comentários depreciativos ditos sempre à meia voz, exclusão e até mesmo violência física. Esse combo de falta de virtudes pode ser aglutinado e traduzido em uma única pedra salgada: preconceito.

E o que é todo esse lixo senão a manifestação do mesmo comportamento primal residual, emergindo apesar de séculos de polimento civilizatório, que mantinha o diferente apartado para proteger o bando? A mente limitada do preconceituoso trabalha nos mesmos moldes animais de outrora, segmentando, diminuindo e isolando aquilo que não tem capacidade de compreender.

Nesse sentido, me permitindo extrapolar a reflexão, pouco importa a "categoria" do preconceito. Étnico, de classe, de gênero, religioso (até mesmo astrológico ou futebolístico), todos compartilham da mesma origem, do mesmo mesmo medo. 

A complexidade do fenômeno do preconceito começa a surgir quando indivíduos maliciosos percebem que é possível operacionalizar esse medo comum, estimulando e se utilizando dele como ferramenta para manipulação da percepção pública, com vistas a alcançar objetivos sociais e financeiros para si ou para o grupo ao qual pertencem.

Essa manipulação faz nascer na sociedade a ideia de que certos grupos não têm direito de acessar espaços, conquistar direitos, exercer funções, expressar crenças ou opiniões diferentes daquelas que são consideradas aceitáveis dentro da estrutura dominante.

Para que o leitor não pense que tudo isso não passa de "baboseira ideológica", vamos a um exemplo prático. Há alguns anos, eu trabalhava produzindo conteúdo para um guia cultural e gastronômico online. Conversando com um proprietário de restaurante árabe sobre a acessibilidade do local, ouvi do meu interlocutor que não investiria nas adaptações necessárias porque "não queria que esse tipo de gente fosse ao estabelecimento dele". Não creio que teria feito qualquer diferença se tivesse dito que eu mesmo fazia parte daquele tipo de gente. Se hoje temos leis que asseguram o livre acesso da pessoa com deficiência a todos os espaços públicos, é porque muitos lutaram contra o preconceito do tipo de gente daquele empresário.

Da mesma forma, também tiveram de lutar os negros para derrubar leis segregacionistas em muitos países que os impediam de frequentar quaisquer estabelecimentos, matricular os filhos em quaisquer escolas, sentar em qualquer lugar no ônibus.

Assim como lutaram as mulheres para frequentar universidades, para ter o próprio negócio sem necessitar da aquiescência do marido, para expressar sua opinião política por meio do voto, para superar noções preestabelecidas de que seriam naturalmente menos aptas do que homens para a prática esportiva ou para atuar em diversas áreas.

É importante lembrar que o caminhar da sociedade não é linear. Que apesar de todos os esforços e avanços traduzidos em politicas públicas inclusivas, ações afirmativas e da aparente intensificação dos diálogos sobre diversidade, grupos como o de pessoas trans têm a sua vida ameaçada diariamente pelo preconceito, e ainda luta pelo direito mais elementar: o de existir da forma como sentem que devem existir.

Já ouvi, dentro da família inclusive, que não há como exigir das pessoas que não hajam de forma preconceituosa porque "elas sempre foram assim". Já ouve um tempo em que a escravidão era vista como algo aceitável; Já ouve um tempo em que tratamentos com "chá de livro velho", sangue-sugas ou lobotomia faziam parte das práticas médicas; as coisas mudam. 

Se você tem em seu convívio qualquer pessoa - um filho, um parente, um amigo - que possa se enquadrar em grupos que sofrem preconceito, procure conversar com ele, saber da experiência dele, do peso injustificado que a sociedade o obriga a carregar diariamente e ofereça acolhimento, compreensão, empatia. Aprenda com a vivência dele e procure estender a mesma compreensão que você dedica à pessoa que você ama aos demais grupos minoritários. 

Pois, como já vimos, o preconceito nasce do mesmo medo, da mesma ignorância, do mesmo ódio. E já é tempo de quebrar essa corrente.