Um olhar por sobre as lentes de Eduardo Baggio
Foto: Reprodução Facebook
Entre o “luz, câmera, ação”
existe ainda um filtro muito mais criterioso. Dos recursos à disposição de um
cineasta, o mais poderoso, diz o próprio entrevistado, é o repertório, que
molda o olhar e que serve de norte para o processo de significação da mensagem.
Doutor em Comunicação e semiótica pela Pontifícia Univercidade de São Paulo,
Eduardo Baggio vem explorando as possibilidades audiovisuais mesmo antes da
estreia no cinema propriamente dito.
Quando relembra os primeiros
anos de carreira – como estagiário do curso de jornalismo – na função de editor
de vídeo na Rede Manchete, ressalta que, antes do declínio da emissora, a carga
de trabalho e as diferentes demandas o obrigaram a um amadurecimento forçado:
“[...] a TV tinha na época o Manchete Repórter e pediam para que eu fosse ao
interior fazer filmagens, eles perguntavam se eu tinha conhecimento e eu falava
que sabia”, relata.
Na TV, adaptou-se rapidamente
à edição, habilidade que se mostraria, mais tarde, fundamental para a
construção da subjetividade de suas narrativas. Se tivermos como exemplo a obra
“28 anos” – vencedora do Festival do Minuto – Baggio constrói a relação de
similaridade entre ele e seu pai através de um recurso essencialmente de
edição. O cineasta opta com colocar lado a lado fotografias em que os dois
personagens constam de idades próximas, segundo o autor, cerca de três ou
quatro anos de vida. A correlação com o tema do festival – mínima semelhança –
fica a cargo do espectador. A trilha, uma gravação de pai e filho cantando uma
canção infantil, reforça ainda mais essa similaridade.
Afeito ao cinema conceitual –
mas sem diminuir a importância do caráter informativo do cinema – Eduardo
Baggio mostra um domínio agudo das funções significantes na utilização da
metáfora imagética. É o que se pode perceber no curta “Sonetos”, inspirado nas
obras do poeta Avelino de Araújo. Com a utilização da imagem de um garfo ou
arames farpados como índice[1]
representante dos versos e estrofes na estruturação do poema, o cineasta
representa mutuamente a identidade, o traço reconhecível e característico das
obras-objetos da significação.
Interessante notar que,
apesar da profundidade das relações entre semântica e metalinguística que as
imagens cumprem dentro da narrativa, o conceito da obra é dotado de um alto
grau de simplicidade, como nota o próprio Baggio ao afirmar: “Quando a ideia
para o ‘Sonetos’ surgiu estávamos eu e um colega de equipe no restaurante da
universidade e eu fui desenhando em guardanapos, quadro a
quadro, como ficaria na tela”.
A percepção peculiar que
marca os trabalhos acima também é traço indelével do longa Amadores do Futebol,
que, ao invés de recorrer aos clichês que circundam o esporte, trata, antes,
daqueles que o constroem e glorificam: torcedores, jogadores, comunicadores,
familiares, apreciadores enfim, das pessoas. Através de personagens como as
esposas dos esportistas – obviamente não profissionais – que os acompanham com
o objetivo de vigiar os maridos, o diretor humaniza o universo futebolístico,
aproximando-o do cotidiano do espectador e provocando empatia. Ao tratar da
realidade que precede os grandes clubes, os valores milionários, a fama, o
filme passa a revelar um amor desinteressado, genuíno do homem com a bola,
evidenciando também o aspecto agregador do esporte: “[...] o filme tem uma
temática mais popular, um apelo pela questão do futebol – embora eu não
quisesse fazer um filme sobre futebol.
O que me interessava eram as pessoas. O advogado joga com fulano que é de outra
cabeça, de outro bairro...”. Novamente chegamos à questão da significação, que
está por traz da dedicação, ou ainda mais, devoção, desses personagens ao
esporte.
Em Traço Concreto,
documentário dirigido em parceria com Danilo Pschera, o foco é a arquitetura modernista. Nesse
contexto, a significação se faz através de movimentos de câmera e
enquadramentos para revelar os planos e dimensões arquitetônicas de três
construções distintas. Ao mesmo tempo em que segue uma linearidade conceitual
mostrando a elaboração do projeto de uma casa, a edificação de uma segunda e a
demolição de uma terceira, traça-se também, semióticamente falando, a
representação temporal dos períodos do movimento arquitetônico em que a obra
cinematográfica está circunscrita.
Já em “Santa Teresa”,
documentário que trata do passado do Hospital Santa Teresa que já funcionou
como clínica de internação compulsória para enfermos atingidos pela Hanseníase,
em uma época em que, devido à fragilidade dos tratamentos, acreditava-se que os
portadores da doença deveriam ser privados do convívio social. Através de
depoimentos mesclados com imagens capitadas in
loco – com uma equipe de apenas três pessoas, Baggio sutilmente aponta o
contraste entre a beleza natural das dependências da clínica com o prejuízo
psicológico enfrentado pelos internos que, em muitos casos, mesmo possuindo o
direito de sair após 30, 40, ou até 70 anos confinados na instituição, já não
tem – ou nem puderam construir vínculo com o “mundo exterior”. O longa, que faz
parte da tese de Eduardo em Comunicação e Semiótica pela PUCSP, sobre o qual o
diretor comenta: “[...] é um filme muito mais tradicional, a história é mais
bem pontuada nas falas. O meu interesse é mais informacional, eu diria até
bastante jornalístico, que é contar a história daquelas pessoas. Embora as
passagens me agradem muito, eu nem me sentia livre para elaborar uma coisa mais
poética diante daquelas histórias...”.
É
através dessa multiplicidade de elementos e de referências que o artista
constrói a sua linguagem e transcreve a sua visão para as obras que assina,
fazendo com que a sua produção carregue uma espécie de marca – mesmo que
inconsciente – de estilo e identificação. A significação passa, como já foi
dito no início, pelos interpretante, ente que fecha a tríade semiótica
defendida por Peirce, e é com base no repertório, que o filtro derradeiro do
sentido consolida (ou inviabiliza) o entendimento. Sobre esse aspecto, o
cineasta ressalta que: “existem elementos como enquadramento de câmera,
movimentos, referências – como a estrutura do soneto, que existe desde o
período elizabethano que comunicam e se o espectador não possuir o entendimento,
pode não interagir com o filme”.
[1]
Leia-se sob a ótica de Peirce, para quem o índice é um signo (representante)
que guarda semelhança com seu objeto (representado) tendo-se como base a
experiência vivenciada, neste caso, o conhecimento sobre a extrutura do soneto,
obrigatoriamente dividida em dois quartetos e dois tercetos.
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