quinta-feira, 2 de julho de 2015

Da soberba da palavra

Debaixo do opressor azul do céu cearense, Patativa do Assaré arava o semiárido com enxada e poesia:

Eu sou de uma terra que o povo padece
Mas não esmorece e procura vencer.
Da terra querida, que a linda cabocla
De riso na boca zomba no sofrer

Na singeleza do verso se esconde a profundeza das virtudes morais do povo simples. Daquele que abre a porta da casa para acolher quem busca dois dedos de prosa. E essa vocação para o "apadrinhado informal", para o desarme - muitas vezes ingênuo - da palavra amistosa, está longe de ser prerrogativa do nortista, seja em terras de charco ou de araucária, sempre há um punhado de pinhão esperando sobre um fogão a lenha para quem tiver um causo pra contar.

Eu, que apesar de bicho urbano, orgulhosamente tenho sangue de agricultor nas veias, tirei das anedotas campeiras muito do gosto pela palavra, a musicalidade da rima, o envolvimento do imaginar coletivo que proporciona. Considerando tudo isso de muito maior relevância do que até mesmo a "estrutura canônica" dos vocábulos. Aprendi no seio simples da minha família que antes de DIZER  corretamente as palavras é preciso VIVÊ-LAS.

Há, no entanto, um certo tipo de pessoa que usa a palavra como escada para ostentar uma erudição mesquinha, em uma demonstração pedante na qual, evidenciando a não conformidade do uso formal da língua, procura desqualificar o interlocutor e acaba por esvaziar de significado uma manifestação legítima de pensamento, e entrepor aos falantes uma distância social fabricada pelo que Pierre Bourdieu chamaria de "Habitus de Classe", capaz de infundir às palavras uma espécie de soberba tão nociva quanto preconceituosa.

Claro que incentivar o aprimoramento intelectual dos indivíduos é uma atitude louvável mas é preciso ter a delicadeza de observar que cada pessoa tem o seu processo de formulação mental - que é inclusive influenciado pelo meio social, situação econômica e mais uma série de fatores - que não pode ser menosprezado pelo modo de utilização da língua enquanto pura e simples ferramenta. Há muito mais envolvido.

A palavra tem de servir de ponte, não de justificativa para o segmento. O indivíduo que apresenta a virtude da humildade - virtude aliás que independe de classe social - percebe que por trás do dizer simples há uma experiência viva de acontecimentos capaz de gerar conexões pessoais indeléveis. É muito mais prejudicial para o ser humano ignorar essas nuances do que ignorar regras de regência ou conjugação verbal.

Seja você pleno da palidez e anacronismo que o seu sangue azul lhe confere ou vibrante como só as cores da terra sabem ser, só se banha de total significação aquele que deixa a palavra fluir sem pré-julgamento. Toda a perfumaria da erudição, das jóias ou da pseudocultura se desmancha frente à soberba expressa na palavra.  

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