sábado, 8 de julho de 2023

Forma e Conteúdo

O conto que segue (poético demais e fantasioso de menos) foi recusado por uma coletânea de literatura fantástica pelo seu caráter não "tradicional". Aparentemente, a fantasia que presta, é somente aquela que se presta a falar de morte. Aquela que anda de mãos dadas com o grotesco, ou que se rende ao simulacro de tudo o que já se fez.   

Então Tolkien não falou dos encantos da vida simples quando imaginou o Condado em O Hobbit? A jornada da Sociedade do Anel não é então uma ode ao companheirismo e à esperança na união dos homens para alcançar dias melhores? 

Enfim, já estive nesse lugar e sei o quanto me custou. Aproveito então este espaço que é meu, para dividir com todos que se deixarem tocar por elas, as letras do jeito que elas mesmas decidiram ser. Com fantasia sim, expressa com suavidade e alguma reflexão.


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 Forma e conteúdo

 

Era um homem que gostava um bom bocado de conversa. Nas maçãs do rosto, o tom cereja que lhe conferia sempre um sorriso em fogo brando, mesmo depois do banho. Maria, que lhe pegava no pé, desde moleque, dizia dele: “este tem melado na fala e nada na caçarola”.

A despeito de toda língua de sogra, gostava de ouvir o doce ou amargo que fosse do cozer da vida alheia. Não para degustar daquilo que normalmente se mantém escondidinho, mas para oferecer o conforto balsâmico de um conselho agridoce aos humores destemperados.

E enquanto se ocupava da redução dos dissabores do mundo, tomava (e comia) para si o peso dos amores malpassados, da amizade que desandou, da carreira sem consistência, da falta de cobertura moral, da vida sem açúcar nem sal.

Tentando sovar a massa excedente e se manter otimista, foi à nutricionista. Ela, dos cabelos flambados e voz de canela, mais que cardápio e tabela, quis saber dos sentimentos que botava na panela.

Se serviu das palavras para pôr tudo em pratos limpos: “há muito mais à mesa do que do que se pode digerir”, começou ele. E destrinchou tudo o que lhe alimentava o espírito e avolumava o corpo.

Com raiva entre os dentes, criticou a opulência do homem que desperdiça a carne enquanto ao lado outros são obrigados a roer os ossos. Sentiu na boca o fel da fome ao se compadecer do nativo desnutrido, da criança esquálida, do pedinte desvalido.

Ao marinar seus pensamentos por um instante, se fez doce de repente. Lembrou que além do azedume reinante, ainda há quem torne a vida mais al dente. Há quem doe preparo e mantimento, há quem mantenha orgânico o sentimento.

A especialista ouvia e se inspirava. Suas crenças às dele, sem reserva, misturava. Enquanto trocavam receitas de vida, seus sentires davam liga e um fenômeno incomum se processava. 

Como em uma massa que aos poucos vai absorvendo os ingredientes, ela passou a se reconhecer nele. E ele passou a sentir em si muito do que era dela. Seus sonhos, medos e membros lentamente se confundiram em um produto doce e homogeneizado.

O amor untou a forma e o conteúdo garantiu o seu formato. De tanto se sentirem próximos, o casal se transformou em bem-casado.