segunda-feira, 21 de setembro de 2020

1.000 ao meu lado 10.000 à minha direita - Reflexões (quase) Metafísicas







Nem bem as primeiras reflexões metafisicas brotaram no solo arenoso onde agonizava minha semente de mostarda, a resposta padrão, o paraquedas reserva da fé cristã introjetado em minha mente durante toda uma vida foi acionado: "É tudo parte de um plano maior, um plano de tal forma miraculoso que a minha mente humana jamais seria capaz de alcançar". 

Respiro fundo. Mas, ao invés de tirar os pés da água, mergulho...

Qual a finalidade ideológica dessa sentença? Ao que ela se presta realmente? Assim como a única lei do paraíso que mantinha o primeiro homem e a primeira mulher longe dos frutos da árvore da ciência do bem e do mal no mito fundador judaico-cristão - por que é isso que essa fábula é -, essa sentença busca manter o fiel aturdido, dominado pela ignorância. Pois um ser que se considere pequeno, insignificante demais diante do mistério, jamais vai se atrever buscar descortiná-lo, jamais vai buscar novas perspectivas de observação e interpretação do mundo que estejam de alguma forma em dissonância com a doutrina totalizante, que deseja penetrar cada aspecto de sua vida, que quer o seu tudo, que existe do rebanho nada menos que o sacrifício do intelecto.

Mordo a maçã... E antes de me mortificar como pecador, me liberto do pecado. Passo a existir não porque sou filho do criador, mas porque penso... E se penso...    

E ao pensar sobre o plano de Deus - ou melhor, deus - recordo da passagem bíblica em que deus exige de Abraão o sacrifício de seu único filho somente para aplacar sua vaidade. O que é vendido há milênios como demonstração de fé, se tivesse lugar nos dias de hoje seria suficiente para por em dúvida a sanidade do pai e serviria de argumento para a perda da guarda do filho.

Perdas familiares também enfrentou Jó ao se tornar um joguete nas mãos de deus e o diabo. Suas virtudes foram postas na balança enquanto o diabo tomava do cervo de deus as posses, a saúde e toda a sua prole. Tendo se mantido fiel, deus multiplica suas benesses e concede a Jó uma nova descendência. Louvai e bem dizei? Eu sempre me perguntei se aquelas sete crianças e esposa que sofreram pestes sem razão aparente e morreram de forma precoce e por motivo torpe mereciam o destino que tiveram... 

Pergunte o leitor também a qualquer pai que tenha perdido um filho (de forma precoce e por motivo torpe) se esse filho é de alguma forma substituível por outro que venha a nascer? Eu perdi um irmão, e posso lhe dizer, leitor, de cadeira, que essa é uma dor que jamais se cala no seio de uma família, não importa quanto tempo passe ou quantas benesses ela venha a experimentar.

Há ainda o servo de deus que buscou auxílio divino para que ursos devorassem 72 crianças que faziam troça de sua calvície... De que plano maior esse episódio grotesco pode fazer parte? Exemplos não faltam de "planos maiores", sobretudo nas páginas do antigo testamento.

Devo confiar então nesses planos enquanto há homens travando guerras, escravizando seus semelhantes, extorquindo fieis justamente em nome de deus? Quem sabe o meu distanciamento não seja grande demais para apreender o sentido da fé que me escapa? Outras doutrinas me trariam respostas melhores do que aquela que recebi de berço?

Resolvi peregrinar, conhecer de perto as diversas faces do divino, na esperança de encontrar alguma em que me encontrasse minimamente refletido e que fornecesse as respostas que eu procurava.

...



Continua



   

 

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

1.000 ao meu lado e 10.000 à minha direita... E ainda assim me tornei (e continuo) ateu





Já há muito tomei a decisão consciente de me desligar de todo e qualquer rito religioso irrefletido praticado unicamente em função do círculo familiar em que me encontro inserido. Mas mesmo antes de possuir qualquer ingerência sobre esse aspecto da vida, a religião quase custou a minha, furtando-me indiretamente a chance de existir.

Explico.

No ambiente rural em que minha mãe nasceu, havia pouco ou nenhum espaço para o questionamento de ideias cristalizadas pelo senso comum. Entre a lavoura, a pequena criação de animais, as tarefas da casa e o cuidado com os irmãos mais novos, o tempo se convertia em um bem escasso para dar uso a reflexões existencialistas e, quando elas vinham à luz, lá estava o catolicismo à espreita, com suas respostas místico-morais definitivas e inquestionáveis, capazes de abrandar a curiosidade natural - sem deixar de atemorizar a consciência - para desencorajar qualquer investida antidogmática futura.

E foi inspirada por esse ambiente - e por um desejo tão corajoso quanto revolucionário de avançar nos estudos além do ponto considerado suficiente para uma mulher do seu tempo e na sua condição social - que ela ingressou como interna em um colégio confessional. Nem é preciso dizer que esse caminho é incompatível com a maternidade.

Depois de estudar piano, latim e perceber que apenas farinha e água compunham a hóstia, a biologia falou mais alto que o chamado e eu pude conhecer o mundo. Não que essa "ruptura" tenha representado um lar menos impregnado de símbolos, práticas e valores espiritualistas durante minha tenra idade. Pelo contrário: na minha casa, sempre se orou e agradeceu "a tudo o que se tem e à aquilo que ainda vamos ter".

Cresci com o "santo anjo" na ponta da língua para penitências emergenciais de curto prazo e a sequência mecanizada do rosário pronta para remediar desvios maiores. 

O principal da minha educação moral se construiu mesmo pelo exemplo concreto. A coerção pelo medo do flagelo divino, a condição de refém em uma guerra milenar entre anjos e demônios se digladiando pela pureza de minhas virtudes sempre me pareceu por demais fabulosa - "fabulosa" aqui empregado em seu sentido literal - para realmente assombrar meus pensamentos e condicionar meus atos.

Aos 14 anos, porém, busquei a catequese de "adultos" para responder às convenções sociais e estreitar os laços com familiares pelos quais tenho muito amor e desde sempre quis chamar de padrinhos. 

Salta à lembrança um episódio da época em que trouxe espanto à catequista ao perguntar a perspectiva bíblica sobre o ato da autossatisfação sexual. Foi interessante notar uma mulher adulta confrontando seus próprios tabus ao mesmo tempo em que buscava uma narrativa que reforçasse o seu papel socialmente esperado.

 Na escola - também confessional - a oração surgia como uma obrigação diária antes de adentrar ao conhecimento. Os mesmos dogmas, as mesmas doutrinas competindo com o darwinismo, a biologia, a física na tentativa da criação de uma falsa simetria que meus olhos infantes ainda não eram suficientemente imbuídos de ceticismo para notar. Minha afinidade com a palavra escrita me levou, inclusive, a entregar um poema ao bispo de Curitiba à época. Poema esse que nem uma cópia eu guardei.

A fissura nesses alicerces começou a aparecer somente muitos anos depois. Já na vida adulta, leitor contumaz, tomei contato com o livro "Éramos jovens na guerra: Cartas e diários de adolescentes que viveram a Segunda Guerra Mundial" (Sarah Wallis/Svetlana Palmer - Editora Objetiva). Um dos relatos me tocou profundamente, trazendo reflexões inevitáveis. 

Um jovem judeu, prisioneiro na Polônia ocupada por Hitler, relata as agruras de Auschwitz e, em seu desespero, escreve: "Se Deus existe, ele vai ter de implorar pelo meu perdão"

Após ser impactado pela dureza dessas palavras e, de certa forma, comungar dessa dor, deitei o livro ao colo e chorei.

A fé judaica é um dos principais elementos de união e distinção de um povo que, historicamente, foi alvo de muitas perseguições e esteve envolvido em disputas territoriais. Para que um de seus filhos abandonasse suas convicções mais basilares e fizesse tal registro, sua desesperança e sentimento de abandono devem ter sido lancinantes.

Lembro que o pensamento que me dominou por semanas foi o seguinte: se existe uma providência, uma presença superior, de amor infinito que rege o universo e de tudo tem ciência mesmo antes de cada movimento de cada partícula viva, por que essa entidade permite a ocorrência de tais atrocidades passivamente

...

Continua...