domingo, 25 de maio de 2025
Sob as rosas de Erato
segunda-feira, 28 de abril de 2025
Um homem velho
sábado, 5 de abril de 2025
sábado, 27 de julho de 2024
Kit Kat: um doce de gatinha
Não tinha mais do que 5 ou 7 centímetros, mas os olhos, verdes e profundos, já se mostravam cheios de uma curiosidade perpétua, capazes de enxergar até mesmo o que os humanos se recusam a reconhecer que existe. Com o tempo, sabia ler as emoções das pessoas com quem passou a conviver e amar, melhor do que elas mesmas podiam.
Um fato conhecido por aqueles que amam gatos é que os felinos, por sua vez, amam caixas. Por isso, seu primeiro presente, antes mesmo de ganhar um nome, foi uma caixa toda almofadada, decorada com um laço lilás grande e fofo, que envolvia todas as bordas como um abraço. Claro que o reconhecimento desse esconderijo contou com algumas mordidas e arranhões, mas bastou alguns instantes para que a nova ocupante se sentisse a senhora daqueles domínios. Só depois é que fomos entender que isso valia na verdade para a casa toda.
Foi o menino mais novo quem escolheu o nome. Se conectaram intensamente desde o momento em que se conheceram, e já na primeira vez em que a gatinha procurou a sua companhia para dormir em segurança, não pode conter as lágrimas e nem mesmo imaginar um futuro sem ela. Tocavam os narizes como sinal de reconhecimento familiar, e por causa da doçura deste gesto, achou que ela devia ter nome de chocolate, achou que ela deveria se chamar: Kit Kat.
No dejejum, aprendeu a gostar de pedacinhos de melão, que a mãe carinhosamente preparava amassadinhos todas as manhãs e que eram ansiosamente aguardados pela pequena, antes mesmo de partir para o prato principal da ração preferida. Chegava mesmo a se sentar à mesa como os demais ocupantes da casa para aguardar o preparo da fruta costumeira.
Era a companheirinha de todas as horas. Quando o menino mais novo passava muito tempo fazendo seus trabalhos da escola, Kit deitava sobre os materiais para exigir que ele fizesse uma pausa e assim ganhar um colo e quem sabe bastante carinho atrás das orelhas. Mas nunca na barriga, pois a barriga era território proibido.
Quando aprendeu a confiar na família que a abrigava e nutria de amor constante, Kit Kat tornou-se quase inseparável da mãe, retribuindo cada carinho do menino mais novo com um ronronar suave e prolongado, que parecia emergir direto do coração. Se ouvia e reconhecia seu nome – sim, ao contrário do que diz o senso comum, os gatos reconhecem o próprio nome – dava à cauda um lindo formato ondulado que só podia significar profunda felicidade por ser o foco de nossa atenção.
Sentia-se segura com o contato visual e dava lentas piscadinhas para expressar tranquilidade ao estar em nossa companhia. De fato, ela passou a estar sempre presente, a fazer parte de cada decisão tomada, de cada momento de júbilo ou tristeza que enfrentamos, de cada recordação que construímos juntos, em família.
E quando a família decidiu deixar a cidade grande para viver mais perto de sua rede de apoio e fortalecer os laços com seus entes queridos indo residir em uma localidade do interior, é evidente que a Kit Kat tinha o seu lugar na casa e na vida nova.
Com certeza há outros tutores que vão dizer – não sem alguma razão - que, tendo ela sido criada como gata doméstica, não estaria preparada para todas essas novas vivências que se apresentavam, e que o melhor teria sido mantê-la em casa, mesmo que para isso fosse necessário seguir restringindo sua liberdade.
Em resposta a essas pessoas, as convido a uma reflexão: é correto apresentar o mar a um marinheiro nato para, em seguida, proibi-lo de navegar? É correto dar a conhecer a música à bailarina e tirar dela a possibilidade de dançar? Em face de escolha semelhante, não pareceu possível (nem justo) fechar as portas para a realização plena das punções naturais da felina, que finalmente podia conhecer mais do mundo e de si mesma.
Claro que nem tudo foram flores, ou insetos, ou passarinhos instigantes e divertidos. Junto com a liberdade vieram as investidas e as disputas territoriais com os mandachuvas do novo local. Houve até mesmo um episódio em que, ao voltar para casa depois de um dia de caçada, a família percebeu em seu pescoço uma coleira diferente da que comumente usava, que foi logo descartada. Ainda que o ocorrido acendesse um sinal de alerta, nunca houve medo de fuga, pois o único laço real que prende todo e qualquer ser vivo é o amor e, por isso, não importa o quão longe suas aventuras a levassem, ela sempre soube para onde voltar.
O tempo avançou como se perseguisse uma presa e quem olhasse a grama alta com desatenção, já não era capaz de dissociar a felina do habitat que dominava. Vez ou outra se deixava perceber quando saltava para surpreender seus alvos ou para retornar à segurança de casa, sempre com um miado que parecia perguntar quem estaria presente para recebê-la e compartilhar as alegrias de suas aventuras. Não ouve outro tempo em que parecesse tão genuinamente feliz.
E foi cercada de todo amor do mundo que continuou crescendo. Exercitando a curiosidade a cada abrir e fechar de porta ou gaveta, explorando cada segredo escondido nas frestas do dia a dia. No entanto, ela mesma guardava um segredo que, por mais conhecêssemos os seus gestos, sua personalidade, ela nunca seria capaz de nos contar. E tanto o menino mais novo quanto a mulher mais velha jamais seriam capazes de supor.
Quem olha pela janela em um fim de tarde de primavera, admira a beleza do céu multicolor também porque sabe que aquele momento passa. E mesmo que o seu colorido intenso e vivo pareça, por um instante, preencher e dar significado a tudo o que existe, também ele se despede lentamente ao cair da noite, deixando a certeza de que, ainda que presenciemos ainda dezenas de outros pores do Sol, nenhum outro será como aquele. Aprendemos da forma mais difícil que isso vale também para quando somos obrigados a nos despedir do nosso “floquinho de neve” que tanto e por tanto tempo amamos.
Sendo Kit Kat tão ativa e vibrante como era, o menor sinal de abatimento se tornava muito evidente. A família começou a notar que, por dias, já não brincava como antes, já não caçava como antes e até se recusava a se alimentar. Cresceu então uma preocupação em nosso coração e não tivemos escolha senão buscar a ajuda de um especialista.
Os exames mostraram então que, além de tudo o que já sabíamos, havia algo que tornava Kit Kat ainda mais especial: aquela anjinho de quatro patas veio ao mundo com apenas um rim. Sinceramente não tenho conhecimento do quão comum é essa condição entre gatos mas imagino que o impacto no tempo e qualidade de vida daqueles que tem de conviver com ela seja significativo.
Claro que imediatamente seguimos as recomendações médicas e mudamos para uma ração específica para felinos pacientes renais (que tivemos que trocar duas vezes até encontrar marca e sabor que fossem do agrado da pequena). Ainda assim, foi necessário complementar sua alimentação com doses de soro diárias para hidratação e remédios.
Não há um único dia, desde então, que a lembrança da gatinha mais amorosa do mundo não se faça presente. Cada cantinho da casa parece guardar o cheiro e uma recordação dela. O melão na mesa do café, pelinhos esparsos esvoaçando pelos lugares mais inusitados, um brinquedo espalhado que parece estar esperando a hora dela voltar, tudo serve para dar à vida em um certo estado de suspensão involuntária, onde a única coisa real é a ausência.
Há os de coração prático que dizem que esse vazio só se afasta com a adoção de um novo pet. Mas o meu coração de poeta, dominado ainda pelo luto, se recusa a pensar na Kit Kat como algo que possa ser substituído, pois não há substituto para o afeto.
O nosso pinguinho de leite não era apenas um gato. Desde a sua chegada, sempre teve o seu lugar como membro da família. A simples presença dela alterou muito mais do que os hábitos da casa, transformou também as dinâmicas das relações, que se tornaram ainda mais amistosas, carinhosas, empáticas. Tudo porque agora os tutores partilhavam entre si o propósito comum de construir também para a Kit Kat o melhor lar que pudesse existir. Com ela, havia histórias que só os três partilhavam, havia risadas que só os três compreendiam. E havia uma compreensão mútua de que todos tinham o seu papel naquela nova estrutura. Onde à parte felina competia ser, muitas vezes, filtro e fluxo do amor que conectava as outras duas partes.
E por falar em esforço, ainda estamos nos esforçando para organizar a vida e os sentimentos sem a presença física da Kit. Realmente espero que este relato possa funcionar como uma mão estendida a todos os leitores que, por ventura, já tenham atravessado experiências semelhantes, para que possam segurar bem firme e saber (e sentir) que não estão sozinhos. O luto é seu. Mas o fardo pode e deve ser compartilhado por todos aqueles que aprenderam a ter um coração mais compassivo, parecido com o do amigo bicho com o qual tiveram o privilégio de conviver.
segunda-feira, 1 de janeiro de 2024
O fim de ano e o fenômeno migratório da classe média
Pela segunda vez consecutiva, em 37 anos, evitamos o frenezi migratório da classe média que obriga todos os seus representantes a enfrentar sorrindo perrengues injustificáveis em áreas litorâneas, unicamente para se sentir inserido nos imperativos de diversão socialmente estabelecidos e exaustivamente massificados pela indústria do entretenimento para o período de fim de ano.
Trocamos as longas horas de estrada e estresse no trânsito por mais tempo efetivo e de qualidade com a família. Deixamos de nos preocupar com o preço do pedágio e da gasolina para desfrutar sem reservas do valor da convivência sem atropelos, dos raros instantes de livre preenchimento da ociosidade concedidos pelo capitalismo contemporâneo. Nos encontramos com a possibilidade de vida além do fluxo.
Ao mesmo tempo, continuamos a ser bombardeados pelo status quo. Suavizadas por narrativas de "renovação", "lei da atração" e "boas energias", práticas supersticiosas puramente alegóricas invadem o horário nobre dos meios de comunicação para alcançar e se cristalizar no inconsciente coletivo, ensinando os indivíduos a terceirizar a responsabilidade sobre os resultados de suas vidas ao relacionar ganhos financeiros, relacionamentos afetivos, saúde - e tudo o mais que for possível - aos astros, às cores da vestimenta, ao cumprimento de uma gincana de tarefas tão inócuas quanto estapafúrdias para atingir seus objetivos.
Assistimos, do conforto de nossa casa, se repetirem as mesmas reclamações e problemas de infraestrutura de cidades turísticas inchadas. Falta o básico: água, comida, segurança, sossego. São centenas de individualismos conflitantes, competindo pelo mesmo espaço nas faixas de areia e frequências sonoras das praias, rapidamente tornadas impróprias para banho e sanidade mental pelos próprios frequentadores.
Escapamos ainda das mesmas filas quilométricas do trajeto de volta (e das tristes estatísticas de acidentes de trânsito que povoam os noticiários pós-feriado). Inicio este novo ciclo - que não tem nada de místico e marca tão somente o tempo que este pálido ponto azul de forma geoide que habitamos leva para orbitar o Sol - da forma que mais me agrada: escrevendo. E lamentando que ainda haja tantos de nós que nem percebam o quanto estão presos a convenções e comportamentos irrefletidos. E pra não dizer que não falei das flores: um feliz (e livre) ano novo!
sábado, 23 de dezembro de 2023
Nada vai bater tão forte quanto a vida
Tá certo, eu admito que roubei esse título do discurso motivacional que o Rocky Balboa faz ao filho no último filme da franquia (por favor desconsidere os caça-níqueis da trilogia "Creed"). O fato é que, diferente do que pode parecer, não me considero propriamente um fã do trabalho do Sly, mas a metáfora do boxe como um campo de cultivo da persistência e aprimoramento pessoal constante, sempre presente nas sequências que acompanham os altos e baixos da carreira do italian stallion - com o perdão do trocadilho - me acerta em cheio.
Isso porque você não precisa ser um pugilista profissional para enfrentar suas batalhas, ser nocauteado e decidir se vai ficar no chão ou continuar lutando antes da contagem final. Todo e qualquer ser humano e, por definição, consciente, alguma vez na vida já se sentiu diante de situação desafiadora e, de alguma forma, semelhante.
Eu mesmo nunca subi num ringue. Mas batalhei a vida inteira com um corpo que não responde aos estímulos na mesma velocidade do meu intelecto. Tive de entender e aceitar o meu próprio tempo e mobilidade para criar soluções adaptadas às minhas particularidades e, dessa forma, chegar ao topo de cada escadaria que um dia me propus a vencer.
Os meus Dragos e Mr. Ts são muito mais do que punhos erguidos esperando uma brecha na defesa para me acertar. São a construção cotidiana da percepção interna de que, apesar de todas as limitações motoras, tenho comigo a capacidade de enfrentar um mundo que não foi pensado para pessoas como eu, que dificulta o acesso a todos os espaços públicos, opções culturais e ao ensino superior por falta das adaptações necessárias.
Contra esses adversários, minha resposta veio na forma de dois diplomas universitários e uma pós-graduação. Veio na conquista da CNH contrariando muitas expectativas. Ou ainda no exercício de ocupação compatível com minha formação e remunerada apropriadamente, de acordo com o trabalho realizado.
Minha intensão aqui não é a da autocongratulação (até porque basta que sejam oferecidas as condições necessárias para que toda e qualquer pessoa com deficiência possa alcançar resultados semelhantes ou ainda melhores que os meus). É antes a de desfazer a noção comum que associa a deficiência física (ou qualquer outra) com fraqueza, com debilidade. A verdade é que a maioria dos indivíduos que olham para o PCD com preconceito ou pena, não aguentaria 10 min. se fosse colocada em nossa realidade. Essas pessoas certamente jogariam a toalha ainda no primeiro round.
Você chamaria de fraco alguém que passou por uma cirurgia sem anestesia? Pois é, isso não é roteiro de filme, foi exatamente o que aconteceu comigo. Há muitos anos atrás, dei entrada em um hospital para a remoção de um abscesso. Com o tecido em torno do local inflamado, a anestesia aplicada não surtiu efeito, e mesmo com meus repetidos protestos e avisos de que estava sentindo todo o procedimento, o médico responsável seguiu com as incisões e raspagem.
A despeito da fúria e indignação sentida, na época o que me ajudou a superar toda a dor da experiência foi justamente um trecho do discurso que dá título a esse texto. Lembro de trazer à mente que, assim como no boxe, na vida "não se trata de bater duro, se trata do quanto você consegue apanhar e seguir em frente. O quanto você é capaz de aguentar e continuar tentando."
domingo, 17 de dezembro de 2023
O dia em que "salvei o mundo" junto com Clarice Herzog (e não fiz nenhum registro para provar)
Pois é, até bem pouco tempo atrás, acreditei que poderia mudar o mundo... Quem roubou minha coragem? Lá pelos idos de 2010-13, ao lado de um bando de malucos ambientalmente conscientes, integrava as fileiras do Ecoberrantes, sob a tutela da insubstituível jornalista e ativista Teresa Urban (1946-eterna).
Muito antes do "dia do fogo", do "ir passando a boiada" e do "aquecimento global é coisa de ecochato e impede o desenvolvimento da economia" que - olha só, quem diria? - tem culminado na oscilação extrema do clima que o mundo todo vem enfrentando nos últimos anos, nós, assim como tantos grupos que ousavam pensar no futuro climático, ocupávamos espaços públicos com intervenções artísticas, coleta de assinaturas e manifestações que já alertavam para a importância da floresta em pé, e para os riscos e consequências da flexibilização das leis ambientais no Brasil.
As atividades do nosso grupo na capital paranaense chamaram a atenção do S.O.S. Mata Atlântica, e por conta do barulho que estávamos fazendo, fomos convidados pelo Mário Mantovani para ir até São Paulo colaborar na elaboração da campanha "Floresta Faz a Diferença". E assim fizemos: colocamos as esperanças na mala e fomos - minha querida amiga Bianca e eu - integrar a reunião.
Uma vez lá, sentamos à mesa com pessoas muito especiais, entre elas o inspirador Rafael Jó Girão (que hoje é um dos diretores do Instituto Agir Ambiental) e, claro, Clarice Herzog, a incansável ativista que transformou a perda do marido Vladmir Herzog para os horrores e arbitrariedades da ditadura no Brasil, em propósito e força na busca pela verdade.
Essa mulher é tão forte e relevante para a história deste país que teve a sua história contada no livro "Heroínas desta História", organizado por Carla Borges e Tatiana Merlino e publicado pela Autêntica Editora, além de ser referenciada em uma das obras mais importantes da música brasileira: "O Bêbado e a Equilibrista", de Aldir Blanc e João Bosco, se tornando um símbolo de resiliência entre os que perderam familiares naquele contexto histórico.
Pois bem, entre as lembranças que tenho daquela reunião, a mais marcante delas é a da própria Clarice me perguntando qual era o que identificávamos como o principal desafio de sensibilizar o público para as questões ambientais relacionadas à preservação da Floresta Amazônica. A minha resposta foi, na ocasião, que o principal desafio, para nós sulistas, era mostrar para as pessoas que, mesmo geograficamente distantes da floresta, nossas ações também têm impacto sobre ela, uma vez que as condições do meio-ambiente são afetadas por uma série de sistemas interconectados, um influenciando no equilíbrio do outro.
"Gostei da sua perspectiva, rapaz!", foi o que ela disse após o fim da minha fala. O desafio era mesmo fazer o público em geral compreender que todos nós temos o nosso quinhão de responsabilidade, seja pela forma como nos alimentamos, como consumimos os recursos naturais disponíveis e a forma como esses modelos de consumo definem os padrões adotados pela indústria.
Preciso dizer que o incentivo e a vivacidade presente nas palavras de alguém a quem eu tanto admirava (e sigo admirando) me fizeram uma pessoa diferente hoje, mais confiante e muito mais determinado a defender da mesma forma tudo em que acredito. Tenho certeza que sou apenas mais uma das pessoas que foram transformadas pelo contato com ela mas se um dia esse texto chegar até ela, gostaria que soubesse que mudou a minha vida.
Não tenho ciência de quantas reuniões mais foram feitas e nem quantos setores das sociedade foram ouvidos até a elaboração final da campanha, mas lembro de ter sentido muito orgulho ao ver personalidades da época portando cartazes e desenvolvendo falas em apoio à campanha que, de certa forma, ajudamos a estruturar. A única coisa que lamento é não ter tido coragem de pedir à Clarice uma foto, embora esse encontro tenha ficado gravado para sempre em meu coração.