quinta-feira, 23 de outubro de 2014

A construção da significação

Um olhar por sobre as lentes de Eduardo Baggio

23/10/2014 – Rico Boschi




Foto: Reprodução Facebook

Entre o “luz, câmera, ação” existe ainda um filtro muito mais criterioso. Dos recursos à disposição de um cineasta, o mais poderoso, diz o próprio entrevistado, é o repertório, que molda o olhar e que serve de norte para o processo de significação da mensagem. Doutor em Comunicação e semiótica pela Pontifícia Univercidade de São Paulo, Eduardo Baggio vem explorando as possibilidades audiovisuais mesmo antes da estreia no cinema propriamente dito.

Quando relembra os primeiros anos de carreira – como estagiário do curso de jornalismo – na função de editor de vídeo na Rede Manchete, ressalta que, antes do declínio da emissora, a carga de trabalho e as diferentes demandas o obrigaram a um amadurecimento forçado: “[...] a TV tinha na época o Manchete Repórter e pediam para que eu fosse ao interior fazer filmagens, eles perguntavam se eu tinha conhecimento e eu falava que sabia”, relata.

Na TV, adaptou-se rapidamente à edição, habilidade que se mostraria, mais tarde, fundamental para a construção da subjetividade de suas narrativas. Se tivermos como exemplo a obra “28 anos” – vencedora do Festival do Minuto – Baggio constrói a relação de similaridade entre ele e seu pai através de um recurso essencialmente de edição. O cineasta opta com colocar lado a lado fotografias em que os dois personagens constam de idades próximas, segundo o autor, cerca de três ou quatro anos de vida. A correlação com o tema do festival – mínima semelhança – fica a cargo do espectador. A trilha, uma gravação de pai e filho cantando uma canção infantil, reforça ainda mais essa similaridade.

Afeito ao cinema conceitual – mas sem diminuir a importância do caráter informativo do cinema – Eduardo Baggio mostra um domínio agudo das funções significantes na utilização da metáfora imagética. É o que se pode perceber no curta “Sonetos”, inspirado nas obras do poeta Avelino de Araújo. Com a utilização da imagem de um garfo ou arames farpados como índice[1] representante dos versos e estrofes na estruturação do poema, o cineasta representa mutuamente a identidade, o traço reconhecível e característico das obras-objetos da significação.

Interessante notar que, apesar da profundidade das relações entre semântica e metalinguística que as imagens cumprem dentro da narrativa, o conceito da obra é dotado de um alto grau de simplicidade, como nota o próprio Baggio ao afirmar: “Quando a ideia para o ‘Sonetos’ surgiu estávamos eu e um colega de equipe no restaurante da universidade e eu fui desenhando em guardanapos, quadro a quadro, como ficaria na tela”.

A percepção peculiar que marca os trabalhos acima também é traço indelével do longa Amadores do Futebol, que, ao invés de recorrer aos clichês que circundam o esporte, trata, antes, daqueles que o constroem e glorificam: torcedores, jogadores, comunicadores, familiares, apreciadores enfim, das pessoas. Através de personagens como as esposas dos esportistas – obviamente não profissionais – que os acompanham com o objetivo de vigiar os maridos, o diretor humaniza o universo futebolístico, aproximando-o do cotidiano do espectador e provocando empatia. Ao tratar da realidade que precede os grandes clubes, os valores milionários, a fama, o filme passa a revelar um amor desinteressado, genuíno do homem com a bola, evidenciando também o aspecto agregador do esporte: “[...] o filme tem uma temática mais popular, um apelo pela questão do futebol – embora eu não quisesse fazer um filme sobre futebol. O que me interessava eram as pessoas. O advogado joga com fulano que é de outra cabeça, de outro bairro...”. Novamente chegamos à questão da significação, que está por traz da dedicação, ou ainda mais, devoção, desses personagens ao esporte.

Em Traço Concreto, documentário dirigido em parceria com Danilo Pschera,  o foco é a arquitetura modernista. Nesse contexto, a significação se faz através de movimentos de câmera e enquadramentos para revelar os planos e dimensões arquitetônicas de três construções distintas. Ao mesmo tempo em que segue uma linearidade conceitual mostrando a elaboração do projeto de uma casa, a edificação de uma segunda e a demolição de uma terceira, traça-se também, semióticamente falando, a representação temporal dos períodos do movimento arquitetônico em que a obra cinematográfica está circunscrita.

Já em “Santa Teresa”, documentário que trata do passado do Hospital Santa Teresa que já funcionou como clínica de internação compulsória para enfermos atingidos pela Hanseníase, em uma época em que, devido à fragilidade dos tratamentos, acreditava-se que os portadores da doença deveriam ser privados do convívio social. Através de depoimentos mesclados com imagens capitadas in loco – com uma equipe de apenas três pessoas, Baggio sutilmente aponta o contraste entre a beleza natural das dependências da clínica com o prejuízo psicológico enfrentado pelos internos que, em muitos casos, mesmo possuindo o direito de sair após 30, 40, ou até 70 anos confinados na instituição, já não tem – ou nem puderam construir vínculo com o “mundo exterior”. O longa, que faz parte da tese de Eduardo em Comunicação e Semiótica pela PUCSP, sobre o qual o diretor comenta: “[...] é um filme muito mais tradicional, a história é mais bem pontuada nas falas. O meu interesse é mais informacional, eu diria até bastante jornalístico, que é contar a história daquelas pessoas. Embora as passagens me agradem muito, eu nem me sentia livre para elaborar uma coisa mais poética diante daquelas histórias...”.

É através dessa multiplicidade de elementos e de referências que o artista constrói a sua linguagem e transcreve a sua visão para as obras que assina, fazendo com que a sua produção carregue uma espécie de marca – mesmo que inconsciente – de estilo e identificação. A significação passa, como já foi dito no início, pelos interpretante, ente que fecha a tríade semiótica defendida por Peirce, e é com base no repertório, que o filtro derradeiro do sentido consolida (ou inviabiliza) o entendimento. Sobre esse aspecto, o cineasta ressalta que: “existem elementos como enquadramento de câmera, movimentos, referências – como a estrutura do soneto, que existe desde o período elizabethano que comunicam e se o espectador não possuir o entendimento, pode não interagir com o filme”.



[1] Leia-se sob a ótica de Peirce, para quem o índice é um signo (representante) que guarda semelhança com seu objeto (representado) tendo-se como base a experiência vivenciada, neste caso, o conhecimento sobre a extrutura do soneto, obrigatoriamente dividida em dois quartetos e dois tercetos. 

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

20 anos do Plano Real – Entrevista Eduardo André Cosentino



O dia 1º de julho de 2014 marcou o vigésimo aniversário do plano econômico responsável pela instituição da moeda corrente no país: o Plano Real. Unanimidade, no entanto, entre analistas econômicos e sociedade é que esse plano foi responsável por transformações muito mais profundas. O conjunto de medidas idealizadas pela equipe do então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso teve como principal demanda o controle dos efeitos nocivos do “Dragão” da inflação, que minava o poder aquisitivo do brasileiro, bem como a credibilidade do país junto a investidores estrangeiros.

Com um pico de taxa de 1703% alcançado em 1993, essa distorção da economia gerava ondas de supervalorização de preços de bens de consumo da noite para o dia, acompanhadas de uma corrida do consumidor às lojas para estocar bens de primeira necessidade. A especulação financeira passou a ser mais rentável do que a troca de bens de consumo no mercado interno, prejudicando diversos setores industriais chave do país, o que dificultava ainda mais a estabilização frente à flutuação excessiva do índice inflacionário.

Para compreender de que forma o Plano Real foi capaz de conter (e controlar) a escalada da inflação no país, o Sistema Muito Nervoso (SMN) conversou com o economista Eduardo André Cosentino – também consultor empresarial, administrador e especialista em Gestão de Assuntos Públicos – procurando traçar um panorama dos erros e acertos do referido pacote econômico, bem como mapear os desafios que enfrenta na tentativa de se manter forte por mais vinte anos:

SMN – Diante do panorama desfavorável observado na economia durante o governo Itamar Franco – época de implantação do Plano Real – como se deu a transição da moeda anterior para o novo valor monetário?

Cosentino – O plano de implantação foi dividido em três partes: em um primeiro momento, houve a fase de equilíbrio das contas públicas, alcançado através da redução da máquina estatal, de medidas que diminuíssem a circulação de papel moeda (limites de crédito) e incentivo ao mercado interno. A segunda etapa foi caracterizada pela adoção de uma “moeda virtual” – a unidade real de valor (URV) – com o papel de facilitar a conversão de valor entre o cruzeiro e o real – que durante um curto período de tempo estiveram simultaneamente no mercado, com a cotação da unidade referencial respeitando a equivalência de um para um em relação ao dólar. A terceira etapa, por sua vez, consistiu na adoção de medidas de controle dos preços que, como primeira reação, se elevaram. Também houve medidas como a criação de metas anuais de controle da inflação e da taxa Selic para regular a incidência de juros nas transações comerciais e a busca por equilíbrio na relação importação/exportação, desta vez também sujeitas às variações do livre comércio de mercados.

SMN – Essas novas dinâmicas de mercado tiveram como efeito fenômenos como a privatização de alguns serviços que antes estavam sob responsabilidade do Estado. Efeito esse muito criticado à época. Como você enxerga as privatizações dentro do processo de implantação do real?

Cosentino – A privatização de alguns setores, como o de telefonia, por exemplo, contribuiu para a primeira fase da implantação, uma vez que diminuía os gastos do governo. Serviços não essenciais, que não faziam parte dos pilares da sociedade, representavam um peso no orçamento da união e, uma vez passando a funcionar com investimento privado, deixavam de pesar nas contas públicas. O governo passava então a ter mais lastro para investir no que era de primeira necessidade.

SMN - Qual foi o setor mais beneficiado pelas mudanças?

Cosentino – primeiramente, o setor rural, muito afetado anteriormente pelas oscilações dos mercados internacionais. Com as medidas de recuperação da economia interna – e o congelamento da equivalência com o dólar – os produtos passaram a ser mais competitivos e os mercados passaram a ser mais atrativos para investimentos estrangeiros.

SMN – Após vinte anos da implantação da moeda, o que temos visto é um governo trabalhando com índices inflacionários bem próximos da meta por longos períodos, ao mesmo tempo as taxas tributárias são bastante altas. Reduzir essas taxas pode ser uma solução para recuperar o controle desses índices?

Cosentino – Ótima pergunta. Primeiro é preciso entender a que se deve essa nova alta. Por uma questão ideológica, o atual governo adota uma série de posturas (programas de transferência de renda, isenção de impostos na indústria automotiva) que aumentam o poder de compra do consumidor através do endividamento, sem, no entanto, representar um ganho real de riqueza e nem exigir algum tipo de contrapartida social. O que acontece é a inundação do mercado com o papel moeda que, como já foi visto, acarreta o aumento da inflação. Antes de pensar em redução tributária, o meu conselho seria a suspensão do imposto de renda, por exemplo, durante um determinado período, o que traria mais dinheiro vivo à mão do consumidor, o que evitaria a adesão do mesmo às compras parceladas, incidência de juros e, consequentemente, a inadimplência