Já há muito tomei a decisão consciente de me desligar de todo e qualquer rito religioso irrefletido praticado unicamente em função do círculo familiar em que me encontro inserido. Mas mesmo antes de possuir qualquer ingerência sobre esse aspecto da vida, a religião quase custou a minha, furtando-me indiretamente a chance de existir.
Explico.
No ambiente rural em que minha mãe nasceu, havia pouco ou nenhum espaço para o questionamento de ideias cristalizadas pelo senso comum. Entre a lavoura, a pequena criação de animais, as tarefas da casa e o cuidado com os irmãos mais novos, o tempo se convertia em um bem escasso para dar uso a reflexões existencialistas e, quando elas vinham à luz, lá estava o catolicismo à espreita, com suas respostas místico-morais definitivas e inquestionáveis, capazes de abrandar a curiosidade natural - sem deixar de atemorizar a consciência - para desencorajar qualquer investida antidogmática futura.
E foi inspirada por esse ambiente - e por um desejo tão corajoso quanto revolucionário de avançar nos estudos além do ponto considerado suficiente para uma mulher do seu tempo e na sua condição social - que ela ingressou como interna em um colégio confessional. Nem é preciso dizer que esse caminho é incompatível com a maternidade.
Depois de estudar piano, latim e perceber que apenas farinha e água compunham a hóstia, a biologia falou mais alto que o chamado e eu pude conhecer o mundo. Não que essa "ruptura" tenha representado um lar menos impregnado de símbolos, práticas e valores espiritualistas durante minha tenra idade. Pelo contrário: na minha casa, sempre se orou e agradeceu "a tudo o que se tem e à aquilo que ainda vamos ter".
Cresci com o "santo anjo" na ponta da língua para penitências emergenciais de curto prazo e a sequência mecanizada do rosário pronta para remediar desvios maiores.
O principal da minha educação moral se construiu mesmo pelo exemplo concreto. A coerção pelo medo do flagelo divino, a condição de refém em uma guerra milenar entre anjos e demônios se digladiando pela pureza de minhas virtudes sempre me pareceu por demais fabulosa - "fabulosa" aqui empregado em seu sentido literal - para realmente assombrar meus pensamentos e condicionar meus atos.
Aos 14 anos, porém, busquei a catequese de "adultos" para responder às convenções sociais e estreitar os laços com familiares pelos quais tenho muito amor e desde sempre quis chamar de padrinhos.
Salta à lembrança um episódio da época em que trouxe espanto à catequista ao perguntar a perspectiva bíblica sobre o ato da autossatisfação sexual. Foi interessante notar uma mulher adulta confrontando seus próprios tabus ao mesmo tempo em que buscava uma narrativa que reforçasse o seu papel socialmente esperado.
Na escola - também confessional - a oração surgia como uma obrigação diária antes de adentrar ao conhecimento. Os mesmos dogmas, as mesmas doutrinas competindo com o darwinismo, a biologia, a física na tentativa da criação de uma falsa simetria que meus olhos infantes ainda não eram suficientemente imbuídos de ceticismo para notar. Minha afinidade com a palavra escrita me levou, inclusive, a entregar um poema ao bispo de Curitiba à época. Poema esse que nem uma cópia eu guardei.
A fissura nesses alicerces começou a aparecer somente muitos anos depois. Já na vida adulta, leitor contumaz, tomei contato com o livro "Éramos jovens na guerra: Cartas e diários de adolescentes que viveram a Segunda Guerra Mundial" (Sarah Wallis/Svetlana Palmer - Editora Objetiva). Um dos relatos me tocou profundamente, trazendo reflexões inevitáveis.
Um jovem judeu, prisioneiro na Polônia ocupada por Hitler, relata as agruras de Auschwitz e, em seu desespero, escreve: "Se Deus existe, ele vai ter de implorar pelo meu perdão".
Após ser impactado pela dureza dessas palavras e, de certa forma, comungar dessa dor, deitei o livro ao colo e chorei.
A fé judaica é um dos principais elementos de união e distinção de um povo que, historicamente, foi alvo de muitas perseguições e esteve envolvido em disputas territoriais. Para que um de seus filhos abandonasse suas convicções mais basilares e fizesse tal registro, sua desesperança e sentimento de abandono devem ter sido lancinantes.
Lembro que o pensamento que me dominou por semanas foi o seguinte: se existe uma providência, uma presença superior, de amor infinito que rege o universo e de tudo tem ciência mesmo antes de cada movimento de cada partícula viva, por que essa entidade permite a ocorrência de tais atrocidades passivamente?
...
Continua...
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