sábado, 27 de julho de 2024

Kit Kat: um doce de gatinha






Tão pequena e branquinha, toda enrolada numa touca preta que estava longe de ser o suporte ideal para o transporte de uma gatinha com apenas alguns meses de vida, podia ser facilmente confundida com um floco de neve em uma tarde fria como aquela, quando encontrou finalmente o calor de que precisava no coração daquela que seria sua nova família, desta vez, para a vida inteira.

Não tinha mais do que 5 ou 7 centímetros, mas os olhos, verdes e profundos, já se mostravam cheios de uma curiosidade perpétua, capazes de enxergar até mesmo o que os humanos se recusam a reconhecer que existe. Com o tempo, sabia ler as emoções das pessoas com quem passou a conviver e amar, melhor do que elas mesmas podiam.

Um fato conhecido por aqueles que amam gatos é que os felinos, por sua vez, amam caixas. Por isso, seu primeiro presente, antes mesmo de ganhar um nome, foi uma caixa toda almofadada, decorada com um laço lilás grande e fofo, que envolvia todas as bordas como um abraço. Claro que o reconhecimento desse esconderijo contou com algumas mordidas e arranhões, mas bastou alguns instantes para que a nova ocupante se sentisse a senhora daqueles domínios. Só depois é que fomos entender que isso valia na verdade para a casa toda.





Tinha uma atração especial pelos longos cachos da mulher mais velha, a quem reconheceu como mãe. Era comum ver a pequena se posicionar no encosto de cabeça do sofá para poder melhor explorar que segredos havia por debaixo dos caracóis daqueles cabelos, curiosidade que sempre rendeu muitas risadas e até hoje é uma de nossas lembranças mais preciosas.

Foi o menino mais novo quem escolheu o nome. Se conectaram intensamente desde o momento em que se conheceram, e já na primeira vez em que a gatinha procurou a sua companhia para dormir em segurança, não pode conter as lágrimas e nem mesmo imaginar um futuro sem ela. Tocavam os narizes como sinal de reconhecimento familiar, e por causa da doçura deste gesto, achou que ela devia ter nome de chocolate, achou que ela deveria se chamar: Kit Kat.




Em poucos anos, Kit Kat cresceu em tamanho, fofura e habilidades felinas. Embora mantivesse os instintos sempre aguçados, estava totalmente integrada aos hábitos da casa. Não seria exagero dizer até que se parecia bastante com seus humanos de estimação. Embora acordasse sempre mais cedo do que seus tutores, depois de comer e beber água, voltava a deitar-se por sobre as pernas da mãe e aguardava que essa se levantasse para só então iniciar seus afazeres de gata.

No dejejum, aprendeu a gostar de pedacinhos de melão, que a mãe carinhosamente preparava amassadinhos todas as manhãs e que eram ansiosamente aguardados pela pequena, antes mesmo de partir para o prato principal da ração preferida. Chegava mesmo a se sentar à mesa como os demais ocupantes da casa para aguardar o preparo da fruta costumeira.

Era a companheirinha de todas as horas. Quando o menino mais novo passava muito tempo fazendo seus trabalhos da escola, Kit deitava sobre os materiais para exigir que ele fizesse uma pausa e assim ganhar um colo e quem sabe bastante carinho atrás das orelhas. Mas nunca na barriga, pois a barriga era território proibido.




Algumas pessoas dizem que gatos não se apegam aos seus donos, que não expressam carinho da mesma forma que fazem os cachorros, por exemplo. Mas quando se convive tão de perto e amorosamente com um felino, é possível aprender a ler os sinais de sua afeição.

Quando aprendeu a confiar na família que a abrigava e nutria de amor constante, Kit Kat tornou-se quase inseparável da mãe, retribuindo cada carinho do menino mais novo com um ronronar suave e prolongado, que parecia emergir direto do coração. Se ouvia e reconhecia seu nome – sim, ao contrário do que diz o senso comum, os gatos reconhecem o próprio nome – dava à cauda um lindo formato ondulado que só podia significar profunda felicidade por ser o foco de nossa atenção.

Sentia-se segura com o contato visual e dava lentas piscadinhas para expressar tranquilidade ao estar em nossa companhia. De fato, ela passou a estar sempre presente, a fazer parte de cada decisão tomada, de cada momento de júbilo ou tristeza que enfrentamos, de cada recordação que construímos juntos, em família.

E quando a família decidiu deixar a cidade grande para viver mais perto de sua rede de apoio e fortalecer os laços com seus entes queridos indo residir em uma localidade do interior, é evidente que a Kit Kat tinha o seu lugar na casa e na vida nova.



Ali o espaço era mais amplo. O horizonte mostrava um verde cheio de novas possibilidades e as portas e janelas podiam permanecer abertas. Junto com os lírios brancos, que florescem em outubro, veio à luz, no espirito da gata, um desejo incontrolável de explorar, de entregar o seu nariz a novos cheiros, os olhos a novos e instigantes movimentos e ao paladar, claro, novos sabores.

Com certeza há outros tutores que vão dizer – não sem alguma razão - que, tendo ela sido criada como gata doméstica, não estaria preparada para todas essas novas vivências que se apresentavam, e que o melhor teria sido mantê-la em casa, mesmo que para isso fosse necessário seguir restringindo sua liberdade.

Em resposta a essas pessoas, as convido a uma reflexão: é correto apresentar o mar a um marinheiro nato para, em seguida, proibi-lo de navegar? É correto dar a conhecer a música à bailarina e tirar dela a possibilidade de dançar? Em face de escolha semelhante, não pareceu possível (nem justo) fechar as portas para a realização plena das punções naturais da felina, que finalmente podia conhecer mais do mundo e de si mesma.

Claro que nem tudo foram flores, ou insetos, ou passarinhos instigantes e divertidos. Junto com a liberdade vieram as investidas e as disputas territoriais com os mandachuvas do novo local. Houve até mesmo um episódio em que, ao voltar para casa depois de um dia de caçada, a família percebeu em seu pescoço uma coleira diferente da que comumente usava, que foi logo descartada. Ainda que o ocorrido acendesse um sinal de alerta, nunca houve medo de fuga, pois o único laço real que prende todo e qualquer ser vivo é o amor e, por isso, não importa o quão longe suas aventuras a levassem, ela sempre soube para onde voltar.

O tempo avançou como se perseguisse uma presa e quem olhasse a grama alta com desatenção, já não era capaz de dissociar a felina do habitat que dominava. Vez ou outra se deixava perceber quando saltava para surpreender seus alvos ou para retornar à segurança de casa, sempre com um miado que parecia perguntar quem estaria presente para recebê-la e compartilhar as alegrias de suas aventuras. Não ouve outro tempo em que parecesse tão genuinamente feliz.



Era de praxe que, ao retornar, ainda húmida pelo orvalho da serra, procurasse se esfregar em quem estivesse disponível no interior da casa, para que este notasse a necessidade de secar os pelinhos da guerreira, que aguardava calmamente o processo como se fosse uma recompensa merecida. Na verdade, era mais um momento de cuidado, de carinho, de conexão que, ao invés de onerar o dia, era visto com satisfação também para quem se prontificava a doar alguns instantes para o mimo.

E foi cercada de todo amor do mundo que continuou crescendo. Exercitando a curiosidade a cada abrir e fechar de porta ou gaveta, explorando cada segredo escondido nas frestas do dia a dia. No entanto, ela mesma guardava um segredo que, por mais conhecêssemos os seus gestos, sua personalidade, ela nunca seria capaz de nos contar. E tanto o menino mais novo quanto a mulher mais velha jamais seriam capazes de supor.

Quem olha pela janela em um fim de tarde de primavera, admira a beleza do céu multicolor também porque sabe que aquele momento passa. E mesmo que o seu colorido intenso e vivo pareça, por um instante, preencher e dar significado a tudo o que existe, também ele se despede lentamente ao cair da noite, deixando a certeza de que, ainda que presenciemos ainda dezenas de outros pores do Sol, nenhum outro será como aquele. Aprendemos da forma mais difícil que isso vale também para quando somos obrigados a nos despedir do nosso “floquinho de neve” que tanto e por tanto tempo amamos.






Os dias que antecederam sua partida foram quase tão frios quanto aqueles há 7 anos, quando uma filhotinha de pelos arrepiados e miado tímido chegou em nossa família trazendo debaixo dos bigodes um tipo de felicidade que nem eu (o menino mais novo) nem minha mãe (a mulher mais velha) sabíamos que existia. Infelizmente, dessa vez, nada traziam consigo, e tudo levaram em troca.

Sendo Kit Kat tão ativa e vibrante como era, o menor sinal de abatimento se tornava muito evidente. A família começou a notar que, por dias, já não brincava como antes, já não caçava como antes e até se recusava a se alimentar. Cresceu então uma preocupação em nosso coração e não tivemos escolha senão buscar a ajuda de um especialista.

Os exames mostraram então que, além de tudo o que já sabíamos, havia algo que tornava Kit Kat ainda mais especial: aquela anjinho de quatro patas veio ao mundo com apenas um rim. Sinceramente não tenho conhecimento do quão comum é essa condição entre gatos mas imagino que o impacto no tempo e qualidade de vida daqueles que tem de conviver com ela seja significativo.

Claro que imediatamente seguimos as recomendações médicas e mudamos para uma ração específica para felinos pacientes renais (que tivemos que trocar duas vezes até encontrar marca e sabor que fossem do agrado da pequena). Ainda assim, foi necessário complementar sua alimentação com doses de soro diárias para hidratação e remédios.





Mesmo com todos os cuidados, Kit Kat já não conseguia recobrar o vigor. A cada vez que retornava para casa, parecia estar um passo mais perto do fim de sua jornada, guardando suas forças para estar próxima da família o máximo que podia. Partiu de forma breve, no colo da mãe que a adotou e que tanto amava. O colo preferido, que tantas vezes lhe serviu de refúgio, foi também o que lhe rendeu o último abraço.

Não há um único dia, desde então, que a lembrança da gatinha mais amorosa do mundo não se faça presente. Cada cantinho da casa parece guardar o cheiro e uma recordação dela. O melão na mesa do café, pelinhos esparsos esvoaçando pelos lugares mais inusitados, um brinquedo espalhado que parece estar esperando a hora dela voltar, tudo serve para dar à vida em um certo estado de suspensão involuntária, onde a única coisa real é a ausência.

Há os de coração prático que dizem que esse vazio só se afasta com a adoção de um novo pet. Mas o meu coração de poeta, dominado ainda pelo luto, se recusa a pensar na Kit Kat como algo que possa ser substituído, pois não há substituto para o afeto.

O nosso pinguinho de leite não era apenas um gato. Desde a sua chegada, sempre teve o seu lugar como membro da família. A simples presença dela alterou muito mais do que os hábitos da casa, transformou também as dinâmicas das relações, que se tornaram ainda mais amistosas, carinhosas, empáticas. Tudo porque agora os tutores partilhavam entre si o propósito comum de construir também para a Kit Kat o melhor lar que pudesse existir. Com ela, havia histórias que só os três partilhavam, havia risadas que só os três compreendiam. E havia uma compreensão mútua de que todos tinham o seu papel naquela nova estrutura. Onde à parte felina competia ser, muitas vezes, filtro e fluxo do amor que conectava as outras duas partes.




Essa percepção não pode ser aprendida ou transmitida com palavras para aqueles que não possuem a mesma vivência. Talvez por isso nunca sejam capazes de compreender que cada amigo bicho é único, assim como cada ser humano – que também é bicho – deveria se esforçar pra ser.

E por falar em esforço, ainda estamos nos esforçando para organizar a vida e os sentimentos sem a presença física da Kit. Realmente espero que este relato possa funcionar como uma mão estendida a todos os leitores que, por ventura, já tenham atravessado experiências semelhantes, para que possam segurar bem firme e saber (e sentir) que não estão sozinhos. O luto é seu. Mas o fardo pode e deve ser compartilhado por todos aqueles que aprenderam a ter um coração mais compassivo, parecido com o do amigo bicho com o qual tiveram o privilégio de conviver.