segunda-feira, 31 de março de 2014

E se...

Chegaríamos todos - ou a maioria de nós - ao fim da tarde. O portão verde - porque tinha de ser verde - antes de nos oferecer obstáculo nos convidaria a entrar, tanto na casa a qual guardava quanto nas firulas dos pululantes dogs que aconchegava dentro de seus limites. Dois ou três - ok, muitos mais - afagos nos peludos altivamente acastanhados e, se tivéssemos sorte, estaríamos de vez porta dentro sem que a pequena corresse e ganhasse a garagem.

Teria eu de vencer o impulso - talvez fosse melhor dizer "a letargia" - de me permitir ficar alguns minutos, ou muitos, ou todos... Ali pela sala mesmo, admirando as máscaras na parede, os quadros, os discos - ah!, os discos - e aquele penduricalho de madeira colorido que, quando girava, roubava de mim toda a atenção.

Enfim, se tivesse vencido então todos esses primeiros encantos, sentaria à mesa - provavelmente já povoada de risos e guloseimas - e poderia então olhá-la no fundo do azul dos olhos e dizer com os meus o quão grato me sentia por merecer um lugar naquela távola.

Ela, por sua vez, estaria postada à cabeceira, como de costume, com a cigarrilha ou um charuto entre os dedos (pensando bem, dada a ocasião talvez fosse mesmo um charuto), com o semblante sereno mas os pensamentos elétricos, formulando os tópicos da conversa que nos aguardava.

Tomaríamos assento certamente para ouvir que este dia é um marco sim, mas é - e tem de ser - um marco de resistência, uma data que, antes de tudo, representa a vergonha de um Estado covarde que se articulou para o golpe, e depois para o regime de exceção cada vez mais rígido, por temer a implantação de medidas concretas que trariam o povo mais próximo do protagonismo da própria história, e por se dobrar às governanças do ente supremo do capital internacional

Ecoariam novamente, nos ladrilhos da cozinha, as palavras do Jango na Central do Brasil, em 64. E ela, entre pausas, talvez optasse por nos fazer sentir, através de suas lembranças, o clima das ruas, das universidades, dos grupos de ativismo que heroicamente integrava na época. E nós... com toda a crueza púbere e orvalhada de nossos espíritos revolucionários entenderíamos o quão significativa havia sido sua caminhada até então... E ansiaríamos, sem nenhuma nesga de dúvida, erguer-nos também - em protestos ou em guerrilhas, pouco importa - para honrar o legado e a semente que há muito estava sendo plantada.

Diria, penso eu, a Baptista, com toda a propriedade, que apesar das vitórias que deixaram esse período de chumbo que a data representa no passado, o autoritarismo ainda corre nas veias do Estado brasileiro, como pudemos tristemente observar no caso do menino Ismael. Imagino-a com uma cópia da carta nas mãos e, com pesar, claro, relendo algumas linhas:

" [...] Ismael, escrevo para dizer que isso pode e precisa mudar. Exige coragem – que você e sua família tiveram – e exigem um compromisso da sociedade. O silêncio foi rompido pela imprensa e pela OAB. Agora, é preciso ir adiante. É preciso localizar os quartos dos horrores, onde é possível espancar uma pessoa, dar choques, sufocar com um saco plástico e ninguém mais, além dos algozes, fica sabendo. São estúdios especiais à prova de som, onde o terror reina? Existem máquinas de choque (talvez herdadas dos quartéis) ou usa-se a instalação elétrica comum, com fios descascados? Ninguém mais sabe ou ninguém se importa?

Sem responder a essas questões e punir que fez, quem viu, quem permitiu, quem se calou, não há política de segurança possível. Precisamos construir uma nova história. Para “congelar o crime” é preciso saber quem são os criminosos e a primeira lição básica está na própria Constituição Federal:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”

...

Minhas eternas reverências à Teresa Urban, que me abriu os olhos para luta, os quais não fecharei jamais...

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