segunda-feira, 21 de julho de 2014

Epístola

Olá senhora ceifeira, como está?

Desculpe a intimidade... Mas com a frequência com que tens se feito presente este ano acho que podemos dispensar algumas formalidades... Levastes dois mais então? João Ubaldo e o Rubem? Homens bons, teve tato na escolha. Desses dois, apenas o primeiro conheci pessoalmente. Foi durante aquele papo literário do Paiol, em uma gélida sexta-feira 13 curitibana, devo dizer - não que essa data tenha alguma relevância, nunca tive em mim nada de supersticioso. Lembro de na ocasião ouvir conselhos dele sobre a constância na prática da escrita e, bem por isso, para honrar este ensinamento, escrevo esta carta.

Bem sabes que recentemente visitastes alguém que me era bem cara. O que não sabes é a reflexão que teu gesto me trouxera. Pensei bastante sobre a morte, o desencarne, a passagem, a subida ao céu (ou não). E só pude concluir que não há nada de nobre na sua função, cara, desculpe-me a franqueza.

Não importa que venhas desfazendo-se em mesuras - como na morna sutileza de um presente de aniversario para quem já viu muitas primaveras - ou aos atropelos - como no estrondo desumano de uma bomba que fende a terra e mancha de sangue irmão duas bandeiras -, sempre haverá a lágrima, a dor vazia que seca a seiva do sonho, a bofetada insone que rouba a direção do próximo passo.

Tú já nascestes indigesta. Cheia dessa inevitável e irritante morbidez calada. Como a contar freneticamente os segundos para o último abraço, para o último aceno, para o último suspiro... Tens essa mania de se pôr um passo a frente, de limitar o futuro daqueles que só desejam um segundo mais. Não negue que lhe agrada recusá-lo, é inútil, pois séculos e séculos confirmam seu sorriso no rosto ao ouvir badalar os sinos das missas de sétimo dia.

De minha parte, enfrento-te não enfrentando. Gozo da vida sabendo do encontro marcado. O que faço é procurar não ter comigo bagagem desnecessária... aquele nó que só a culpa faz prender à garganta, as palavras de amor que nunca ganharam papel, música, ouvidos, os rancores cultivados em frascos de veneno... Nada disso pretendo ter comigo quando nos esbarrarmos por aí...

Sei que parece demasiado altruísta ficar sustentando essas palavras - e que certamente estás a rir de mim enquanto lê estas linhas - mas se há algo de verdadeiro no que digo, Dona Morte, é que há muito não consigo mais temê-la pra mim, o que me transtorna é o fato de estares livre para vir a quem mereça menos do que eu. Como as crianças da Palestina, como os passageiros daquele voo covardemente abatido ou como o velho que só agora descortinou os olhos para apreciar a vida.

Eu, que muitas vezes não mereci o dia seguinte, tenho dele desfrutado... Então diz-me qual é o teu critério?

Do seu amigo de sempre e alvo futuro

Ps: Espero não ter atrasado o seu itinerário     

 

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